Comentário de Siegfried J. Schwantes, Ph.D.*
Outros Argumentos Menores contra uma Data no 6º Século
1. O fato de que no canon hebraico do Velho Testamento o livro de Daniel se encontra não entre os profetas, mas na terceira seção conhecida como os “escritos”.
Dever-se-ia dizer em primeiro lugar, que não há nada sagrado sobre a ordem dos livros no cânon hebraico. Esta ordem varia nos manuscritos do V. T., bem como nas edições impressas da Bíblia hebraica. Além disso, a ordem dos livros na Bíblia hebraica é diferente da ordem da Septuaginta, a tradução grega feita em Alexandria entre 250 e 150 a.C. Nos melhores manuscritos da Septuaginta o livro de Daniel aparece na mesma posição como nas edições modernas da Bíblia, isto é depois de Ezequiel. Outra indicação de que não havia uma ordem fixa dos livros canônicos é que as listas destes livros que se encontram nos escritos patrísticos diferem bastante uma das outras tanto na ordem como no número dos livros.
Josefo que era sacerdote versado nas Escrituras, afirma haver 22 livros no Velho Testamento. Ele especifica que 5 constituiam a Lei, e que quatro continham “Hinos a Deus e preceitos para a conduta da vida humana”. Estes quatro com toda probabilidade representavam os Salmos, Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. A terceira seção, a dos Profetas, continha, segundo Josefo, treze livros, entre os quais certamente ele contava o livro de Daniel.8
Melito de Sardis, escrevendo a um amigo cerca de 180 A.D.. concernente aos livros do Velho Testamento, enumera os profetas na seguinte ordem: Isaías, Jeremias, os Doze, Daniel, Ezequiel e Esdras. R. D. Wilson menciona que “Origenes, em 250 A.D., e Jerônimo, em 400 A.D., ambos instruídos por rabinos judaicos e afirmando ter obtido sua informação de fontes judaicas colocam Daniel entre os profetas. E, afinal, todos os unciais gregos e os pais gregos e latinos, são unânimes em colocar Daniel entre os profetas, e em separar os Profetas dos Livros Históricos”.9
Há boas razões para crer que o livro de Daniel foi transferido pelos massoretas, por razões dogmáticas, de entre os Profetas para sua posição presente entre os Escritos. O fato do livro de Daniel ter sido considerado uma arma importante para os apologistas cristãos em sua controvérsia com os rabinos sobre a pretensão messiânica de Jesus Cristo, tendia a despertar o preconceito dos rabinos contra o livro. Particularmente ofensiva aos judeus era a tentativa da parte dos cristãos de fundar o messianismo de Jesus sobre a profecia de Daniel 9. O Talmude pronuncia uma maldição contra os que faziam cálculos sobre quando o Messias devia aparecer.10
2. O fato do nome de Daniel não figurar na lista de personalidades bíblicas renomadas que se encontra no livro de Eclesiástico.
Os críticos argumentam que Jesus ben-Siraque, que escreveu o Eclesiástico por volta de 180 A.C., nada sabia de Daniel, de outro modo ele o teria mencionado em seu panegírico das celebridades bíblicas (caps. 44-50). O fato do Sirácida não mencionar nenhum dos profetas menores por nome, e nem mesmo Esdras que tanto se destaca na tradição judaica, torna o argumento sem valor. O argumento reteria seu peso somente se a lista fosse completa, o que não é o caso. Provavelmente Daniel não se enquadrava nos critérios do Sirácida sobre quem deveria figurar em sua lista. de outro lado o elogio exagerado que ele faz do sumo-sacerdote Simeão, seu contemporâneo, nos faz duvidar da validade dos critérios adotados pelo Sirácida.
3. A angeologia do livro de Daniel é demasiado avançada para um autor escrevendo no sexto séc. A.C.
A existência de anjos é pressuposta através do Velho Testamento desde o livro de Gênesis até o livro de Zacarias. É verdade que o livro de Daniel é o único a mencionar anjos pelo nome, como Gabriel (Daniel 8:16 e 9:21), e Miguel (10:13 e 21; 12:1). Deve-se observar, porém, que este último nome é atribuído a um príncipe e não a um anjo especificamente. Somente em Judas 9 é Miguel identificado com “o arcanjo”.
Com efeito a angelologia de Daniel é bastante simples quando comparada com a dos apocalípticos escritos a partir do segundo século A.C. o Livro de Enoque, por exemplo, menciona não menos de 27 anjos.11 Outros livros apocalípticos são manos prolíficos, mas mesmo assim cunham nomes de anjos com bastante frequência.
Gabriel aparece em Daniel como o nome do anjo intérprete. O profeta Zacarias escrevendo em 520 A.C. – e ninguém duvida da data da primeira parte do livro – refere a seu anjo intérprete dezoito vezes. Além das duas referências a Gabriel, anjos são especificamente mencionados somente em mais dois textos do livro de Daniel 3:28 e 6:22. Pode-se, pois, concluir que a angelologia de Daniel é pouco mais avançada que a de seu contemporâneo Zacarias, que aliás usa o termo “Satan” quase como um nome próprio (3:1-2).
4. O aramaico do livro de Daniel é bastante tardio.
O livro de Daniel foi escrito parte em hebraico (1:1-2:4a;8:1-12:13) e parte em aramaico (2:4b-7:28), outra língua semítica como o hebraico. O aramaico começou a tornar-se uma língua internacional.
Eruditos como S. R. Driver e H. H. Rowley eram da opinião que o aramaico de Daniel tinha peculiaridades que traiam uma data posterior ao de Esdras. Assim, S. R. Driver escreveu no fim do século XIX: “As palavras persas pressupõem um período depois do império Persa estar bem estabelecido; as palavras gregas exigem, o hebraico apoia, e o aramaico permite, uma data depois da conquista da Palestina por Alexandre o Grande (332 a.C.)”12.
Os critérios usados para atribuir uma data tardia ao hebraico de Daniel são bastante subjetivos. Falando da linguagem do V. T., D. Winton Thomas observa que, “Débora não fala de modo muito diferente de Qoheleth, embora mil anos os separem”13.
A descoberta dos Papiros de Elefantina no começo do século, e dos Manuscritos do Mar Morto desde 1947, fornecendo aos estudiosos uma abundância de documentos em aramaico, os quais datam respectivamente do quinto séc. A.C. e de 150 A.C. a 68 A.D., forçou uma revisão crítica quanto à data do aramaico do Livro de Daniel. Assim G. F. Hasel pode escrever recentemente: “Como resultado da descoberta dos Papiros de Elefantina F. Rosenthal, louvando-se da síntese de H. H. Schaeder Iranische Beitrage (Halle/Saale,1930), pp. 139-296, e de um importante artigo de J. Lindar “Das Aramaische im Buch Daniel”, ZKT 59 (1935), pp. 502-545, concluiu em 1939 que a velha ‘evidência lingüística’ (para uma data tardia para Daniel) deve ser posta de lado”.14
K.A. Kitchen, examinando o vocabulário, ortografia, fonética e morfologia geral e sintaxe do aramaico de Daniel, chegou a uma conclusão semelhante: “O aramaico de Daniel (e de Esdras) é simplesmente parte do aramaico imperial – do qual não se pode distinguir a data entre 600 e 330 A.C.”15
H.H. Rowley contestou a opinião expressa acima, mas seus argumentos foram refutados por E.Y. Kutscher em seu artigo, “Aramaico”, Current Trends in Lingistics 6th ed. T.A. Seboek (The Hague, 1970), pp. 400-403. A opinião que o aramaico de Daniel pertence ao aramaico imperial é partilhada por J.K. Koopmans, Aramaische Chrestomatie I (Leiden, 1962), p. 154; e por F. Rosenthal, A Grammar of Biblical Aramaic, 2nd ed. (Wiesbaden 1963), p.6.
Em 1956 o documento em aramaico Genesis Apocryphon, um manuscrito encontrado nas cavernas de Qumrã, foi publicado. De acordo com considerações paleográficas e lingüísticas ele pertence ao primeiro séc. A.C. Estudando este documento P. Winter observou que ao passo que o aramaico de Daniel e de Esdras é aramaico oficial (imperial), o do Genesis Apocryphon é claramente posterior. Esta conclusão é confirmada por Glenson L. Archer em seu artigo, “O Aramaico do Gênesis Apócrifo Comparado ao Aramaico de Daniel”, New Perspectives on the Old Testament, ed. J. B. Payne (Waco, Texas), pp. 160-169.
Depois de recapitular os mais recentes estudos sobre o aramaico de Daniel, J.C.Baldwin conclui: “Está se tornando um fato aceito que a data de Daniel não pode ser decidida por argumentos lingüísticos, e a evidência que se acumula não favorece uma origem ocidental no segundo século”.16
5. Palavras gregas no livro de Daniel.
Costumava-se argumentar que a presença de palavras gregas – com efeito há apenas três, e todas as três são nomes de instrumentos musicais – demonstra que o livro de Daniel foi escrito depois das conquistas de Alexandre o Grande e a difusão da língua grega no Próximo Oriente. Mas como J.A. Montgnomery observa em seu comentário: “A refutação deste (argumento baseado no uso de três palavras gregas) para uma data tardia consiste em salientar as potencialidade da influência grega no Oriente a partir do sexto século”.17
A medida que as pesquisas arqueológicas progridem torna-se cada vez mais evidente que as trocas comerciais e culturais entre o mundo grego e o Oriente remontam ao oitavo século A.C. Cerâmica grega daquela época tem sido encontrada em muitos lugares do Próximo Oriente, e um entreposto comercial grego foi estabelecido em Náucratis, no Delta Nilo, por volta de 600 A.C. Mercenários gregos estavam sendo engajados em exércitos estrangeiros por este tempo. E podemos imaginar que onde soldados iam os instrumentos musicais os seguiam juntamente com os termos para designá-los. Artistas gregos empregados na construção dos palácios de Persépolis (500 A.C.), e é provável que alguns foram também empregados em Babilônia.
Neste caso não é surpreendente que termos gregos tenham se infiltrado na linguagem da corte de Babilônia, onde novos instrumentos musicais foram facilmente benvindos. O fato que a palavra sinfonia não consta ter sido usada no grego como o nome de um instrumento musical antes do tempo do historiador Pelíbio (c.150 A.C.), pode ser pura consciência. Muito da literatura grega antiga simplesmente não sobreviveu até nossos dias.
Como E.B. Pusey observa: “Porque dos seis instrumentos mencionados em Daniel, nenhum leva um nome hebraico, se o livro foi escrito na Palestina no segundo séc. A.C.?”18 Quando o grego era bastante disseminado na Palestina a partir do terceiro séc. A.C., os críticos devem explicar porque há tão poucos termos emprestados ao grego em Daniel, se é que o livro foi escrito na Palestina na época dos macabeus. A maior parte das inscrições funerárias e grafitos encontrados na Palestina datando desta época eram em grego.19
6. O estilo apocalíptico do livro de Daniel enquadra-se melhor na mentalidade prevalente na Palestina no segundo séc. A.C.
Embora o gênero apocalíptico de literatura tenha florescido a partir do segundo séc. antes de nossa era, não há razões que nos constrangem a considerar o livro de Daniel parte desta literatura. Como vários estudiosos têm observado, a apocalíptica é filha da profecia, e não se pode estabelecer uma distinção absoluta entre ambas. Traços do estilo apocalíptico aparecem em Isaías 24 a 27, em certas seções de Ezequiel, particularmente nos caps. 38 e 39, em Joel 2:28 a 3:21, e em Zacarias.20
Em vários dos últimos escritos proféticos nota-se uma tendência de mudar o foco de atenção do futuro imediato para o eschaton, de considerações puramente nacionais para outras de natureza universal. O propósito de Deus para com Israel começou a ser melhor discernido num contexto mais amplo. Com o exílio ampliou-se a perspectiva geográfica de Israel, e o conceito de Deus como soberano universal raiou como uma nova revelação. Que as nações vizinhas, tais como Moabe, Amon, Aram, Filístia, estavam sob a jurisdição de Jeová e lhe eram moralmente responsáveis, Amós já o tinha afirmado. Mas o exílio babilônico aprofundou a convicção de que Jeová era o Deus de todas as nações. Ao horizonte geográfico mais amplo ajuntou-se uma perspectiva temporal mais vasta. A história começou a ser vista como se desenrolando numa escala temporal muito mais longa. As velhas civilizações de Babilônia e do Egito não podiam deixar de impressionar os exilados com esta realidade inquietante.
De posse destas duas convicções, a soberania universal de Jeová e a história se estendendo sobre milênios, Israel estava preparado para receber uma nova espécie de revelação caracterizada por sua preocupação universalista e seu escopo escatológico. Esta revelação seria muito mais rica em simbolismos por causa da dificuldade de expressar realidades escatológicas em simples prosa. Símbolos, como parábolas, tem o poder de comunicar a verdade religiosa não somente ao intelecto, mas ao ser humano em sua totalidade. Como uma figura diz mais do que mil palavras, de igual modo símbolos.
Notamos três traços comuns nos escritos apocalípticos: Preocupação supra-nacional, perspectiva escatológica e uso mais frequente de linguagem simbólica. Mas todos os três já estão presentes nos escritos dos profetas exílicos e pós-exílicos em graus diferentes. Como A.C. Wech observou, “Daniel deve ser julgado pelas afinidades com os profetas que o precederam, e não pelas afinidades com seus imitadores”.21 Todos os fatos morais e intelectuais que reclamavam um novo gênero de revelação já estavam presentes quando Daniel foi inspirado a escrever seu livro.
Uma razão adicional pode ser sugerida para a necessidade do tipo de revelação dado a Daniel. As profecias gloriosas referentes à restauração de Israel depois do exílio, vindas principalmente da pena de Isaías, poderiam levar a um desapontamento amargo, quando seu cumprimento não correspondeu à expectativa. A restauração foi um processo lento e penoso, e a nação de Israel nunca atingiu o nível de prosperidade material previsto por Isaías 60, por exemplo. Ao contrário, como Neemias testifica, a obra de restauração foi elevada a cabo em face de muita oposição (Neemias 4).
O que faltava nos escritos proféticos era uma clara perspectiva de tempo. Acontecimentos futuros na história da redenção eram vistos como um só evento que enchia todo o horizonte. Não se fazia uma distinção clara entre a primeira e a segunda vinda do Messias. Chegara o tempo para que apocaliptistas como Daniel introduzissem um senso de perspectiva nas visões indistintas dos profetas clássicos. Não só o tempo estava maduro para uma tal revelação, mas a necessidade era urgente para que a fé de um remanescente fiel não viesse a sossobrar. A Daniel, e mais tarde a João no Apocalipse, luz adicional foi dada por Deus para iluminar a ordem dos acontecimentos futuros na história da redenção. O futuro seria dividido em períodos claramente definidos e a fé teria seu fardo aliviado.
Assim é que o conflito secular entre os santos e o anticristo é limitado a três anos e meio na profecia de Daniel 7:25. A vindicação da verdade de Deus e de Seu propósito redentor é localizada no final da história, no fim das 2300 “tardes e manhãs” de Daniel 8:14. Setenta semanas de graça adicional seriam concedidas à nação judaica, período este que devia culminar com a vinda do Messias e Sua morte de acordo com Daniel 9:24-27.
Temos aqui três profecias com tempo específico que introduziram perspectiva e ordem onde antes havia apenas uma vaga expectativa do “dia do Senhor”. De acordo com estas profecias, os Kairoi de Deus, os momentos críticos na história da redenção, seguiriam uns aos outros dentro do programa divino. Os crentes poderiam levantar suas cabeças e renovar sua coragem vendo os marcos sinalizando onde estavam em sua longa peregrinação à cidade celeste.
Do que acaba de ser dito torna-se evidente porque o livro de Daniel ocupa uma posição pivotal no canon bíblico. Se a fé neste livro é minada, a fé cristã tem muito a perder. Isto explica porque o autor pagão Porfírio, que viveu na última parte do século terceiro a.d., fez um ataque tão resoluto contra a credibilidade do livro. Fazendo-o passar por uma pseudo-profecia escrita no tempo de Antíoco Epifânio, Porfírio esperava privar os cristãos de sua principal arma na defesa da fé. Ele percebia que seu valor apologético seria destruído, se sua data no sexto século a.C. fosse negada.
7. Influências Zoroastrianas na Teologia do Livro
Estudiosos que mantêm que o livro de Daniel foi escrito no segundo século a.C. argumentam que a influência da teologia de Zoroastro seria mais sentida nesta época mais tardia do que no sexto século a.C. O fato é que a pretendida religião de Zoroastro sobre a apocalíptica em geral, e sobre o livro de Daniel em particular, está perdendo muito de sua credibilidade à luz de estudos mais recentes.
Assim é que Paul D. Hanson nega uma influência persa sobre Daniel, concluindo que tanto a influência persa como a helenística foram tardias, “surgindo apenas depois que o caráter da apocalíptica estava plenamente desenvolvido, e assim se limitam a pontos secundários”22. Para E. C. Zaehner, “uma dependência judeu-cristã do zoroastrismo em seu pensamento puramente escatológico não é nada convincente. Não temos evidência alguma das idéias escatológicas mantidas pelos zoroastrianos nos últimos quatro séculos antes de Cristo”23.
É um fato que os ensinos de Zoroastro não foram reduzidos à forma escrita até o começo da era cristã. O Avesta não data que do quarto século a.d.24. O Dinkart é, segundo admite S. B. Frost, uma obra do nono século a.d.25. Em vez de ver idéias iranianas influenciando os apocaliptistas, Mary Boyce “considera possível que o material zoroastriano foi absorvido de fontes estrangeiras, isto é, helenísticas, e a possibilidade de uma tal influência em geral na formação do canon do Avesta não pode ser negada”26. W. G. Lambert conclui suas considerações sobre a evidência da influência zoroastriana dizendo: “Enquanto a datação da evidência zoroastriana permanece incerta será impossível extrair qualquer conclusão válida sobre a prioridade de Daniel ou da tradição zoroastriana”27.
Lambert, por sua vez, inclina-se à ver nas profecias babilônicas um protótipo das profecias de Daniel, particularmente a do cap. 11. A. K. Grayson foi o primeiro a chamar a atenção a estas assim chamadas profecias babilônicas em seu livro, Babylonian Historical-Literary Texts, publicado em 1975. Grayson pensou poder ver uma relação íntima entre as profecias dinásticas escritas nos tempos helenísticos e as de Daniel 8:23-25 e 11:3-45. No estilo, forma e rationale há uma semelhança notável”28.
O máximo que se pode dizer é que este gênero de profecia não era desconhecido em Babilônia mesmo nos dias de Daniel. Alguns membros da comunidade judaica podiam estar com ele familiarizados. Quão apropriado, então, que Daniel, sob inspiração divina, devesse combater a influência destas pseudo-profecias como uma delineação suficientemente detalhada do futuro de modo a inspirar fé em seus leitores quanto à soberania divina sobre o curso da História. Tais predições satisfariam uma necessidade entre os exilados, e ao mesmo tempo proveria conforto àqueles que pudessem vir a sofrer na próxima grande crise que a nação teria que enfrentar.
Em vista das considerações acima um apocalipse escrito no sexto século a.C. não seria um anacronismo como alguns estudiosos propõem. Como os profetas clássicos que o precederam, Daniel também estaria satisfazendo as necessidades espirituais de seu povo. Este estava sendo confrontado com pseudo-profecias e o caráter único de Jeová estava sendo posto em dúvida. Os repetidos desafios que Isaías tinha feito aos deuses de Babilônia de predizer o futuro deviam ainda soar no ouvido do povo (Isaias 41:21-23; 44:7-8; 45:20-21). Às predições de Isaías relativas a um Redentor vindouro que libertaria Israel do Cativeiro, Daniel acrescentaria algumas profecias de longo alcance, que estabeleceriam um forte contraste entre profecias autênticas e as que estavam sendo compostas no meio pagão. A. K. Grayson chama atenção a um tal contraste quando observa: “Não há sugestão em nenhuma profecia babilônica de um fim climático à história mundial”.29
Repetidas afirmações quanto ao desfecho da história mundial seria uma nota dominante nas profecias de Daniel. Ele revelaria aquilo que a mera sabedoria humana não podia prever. Se “profecias” babilônicas proveram a ocasião para seus oráculos apocalípticos, Daniel iria muito além descrevendo um conflito multi-secular pela dominação do mundo até sua consumação com o estabelecimento do reino eterno de DEUS.
F. M. Cross bate na tecla certa quando afirma: “A origem da apocalíptica deve ser procurada no sexto século a.C. Na catástrofe do exílio a velha forma de fé e tradição entrou em crise, e as instituições de Israel sofreram colapso ou foram transformadas”30.
Daniel e os Achados de Qumrã
Na base de critérios paleográficos muitos dos manuscritos e fragmentos encontrados nas cavernas de Qumrã foram atribuídos ao segundo e ao primeiro século antes de nossa era. Nenhum manuscrito completo de Daniel foi encontrado, mas diversos fragmentos o foram, particularmente nas cavernas 1, 4 e 6. Nem todos os fragmentos foram publicados, mas os seguintes textos vieram à luz: Daniel 1:10-17; 2:2-6; 2:19-35; 3:22-30; 7:28 – 8:1; 8:16,17, 20-21; 10:8-16; 11:33-36, 38. Um fragmento preserva a transição do hebraico para o aramaico em cap. 2:4, e outro a transição do aramaico para o hebraico em 7:28 – 8:1. Todos testificam da correção geral do texto massorético, apesar de variações aqui e acolá, sobretudo na ortografia.
F. M. Cross atribuiu a um dos fragmentos achados na caverna 4 uma data entre 100 a 50 a.C. A presença de um tal fragmento nas cavernas de Qumrã constitui argumento forte contra uma data na época dos macabeus para a composição do livro de Daniel. De acordo com R. K. Harrison uma tal data é “absolutamente excluída pela evidência encontrada em Qumrã… O tempo seria insuficiente para uma composição macabeana ser posta em circulação, venerada, e aceita como escritura canônica por uma seita macabea”.31
A presença de livros não-canônicos entre os manuscritos do Mar Morto não invalida o argumento acima. O debate aqui não é sobre a canonicidade do livro de Daniel, mas quanto a sua data. Um livro que não tivesse sido conhecido previamente como pertencendo à coleção de livros tidos como canônicos pelos judeus não poderia ganhar tanto prestígio em tão pouco tempo, para ser reconhecido pela comunidade de Qumrã.
Unidade do Livro
O fato do livro de Daniel ter sido escrito em duas línguas tem levado alguns estudiosos a postular mais de um autor. Outro argumento que se alega para uma diversidade de autores é que 5 dos primeiros 6 capítulos tratam de histórias, ao passo que a segunda parte do livro é profética em estilo e conteúdo. Alguns estudiosos vão mesmo a admitir a proveniência babilônica dos primeiros seis capítulos, aos quais um autor do segundo século a.C. teria anexado o material profético dos últimos capítulos. O desejo de separar as duas seções do livro deve-se ao reconhecimento de que as histórias da primeira parte do livro não refletem o antagonismo profundo entre o elemento conservador da comunidade judaica e o mundo pagão que o cercava. Nada se percebe da polarização emotiva que caracterizava a opinião pública na época dos Macabeus. Com efeito, Nabucodonosor é descrito como um monarca benevolente, embora por vezes caprichoso. Daniel e seus companheiros não se sentem embaraçados em ocupar cargos públicos nas administrações de Nabucodonosor e Dario o Medo. É claro que ninguém escrevendo na época dos Macabeus proporia Daniel como um modelo. Ao contrário seria taxado de Quisling a serviço de reis pagãos.
Apesar da incongruência entre o espírito dos seis primeiros capítulos e o clima religioso que prevalecia na judéia na época dos Macabeus, muitos estudiosos sustentam a unidade do livro, entre eles S .R. Driver. De sua parte R. H. Pfeiffer não via razão para impugnar a unidade do livro, mas pensava descobrir “em ambas suas partes o mesmo objetivo e o mesmo fundo histórico”32. O defensor mais recente da unidade do livro foi H. H. Rowley que mesmo em 1950 podia escrever: “As características mentais e literárias do livro são as mesmas através do todo. O ônus de provar o contrário jaz com os que dissecam a obra”33.
A defesa de Rowley da unidade do livro estaria acima de objeção se ele aceitasse uma data no sexto século a.C. Mas como ele propõe uma data no segundo século, como a maioria dos estudiosos, seu argumento torna-se forçado. A opinião erudita mais recente é que um editor do segundo século usou o material mais antigo de origem babilônica e acrescentou as visões dos capítulos 7 a 12. Como A. Jepsen observou: “Se o livro em sua presente forma data do tempo dos macabeus sua unidade cessa absolutamente”.34
O capítulo 7 jaz em terreno contestado. Alguns estudiosos o ligariam à primeira parte do livro porque é escrito em aramaico; outros o ligariam com a segunda parte por causa de sua natureza visionária. Em sua divisão da história em quatro períodos ele tem afinidade com o cap. 2, mas em outros respeitos tem laços evidentes com os capítulos subsequentes. Na opinião deste autor o cap. 7 constitui uma ponte entre as duas seções do livro e confirma sua unidade. O problema todo da unidade do livro seria resolvido se se assumisse uma data no sexto século A.C. Afinal de contas esta é a única data derivada do documento, se o valor de suas afirmações é admitido.
(Daniel o profeta do juízo – Schwantes)
Continuaremos…
Parte 3 – Daniel Capítulo 1
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NOTAS
8. Contra Apionem, i,8.
9. Robert Dick Wilson, Studies in the Book of Daniel (New York, 1938), p. 49.
10.G. F. Moore, Judaism, Vol II, p.352. Talmud, Sanhedrim 97b (Vol.ii, p.659).
11.R.H. Charles, ed., The Apocrypha and Pseudoepigrapha, Vol. 2 (Oxford, 1913), pp. 191,193,201,220,223,236.
12.Introdoction to the Literature of the Old Testament, 1909, p.508.
13.H.W. Robinson, ed., Record and Revelation, 1909, p. 508.
14.”Book of Daniel: Matters of Language”, AUSS, Vvol. 19, No 3, pp.179-194
15.”The Aramaic of Daniel”, Notes on Some Problems in the Book of Daniel eds. D. J. Wiseman et al. (London, 1965), pp.31-79, esp.p.75.
16.Daniel, pp. 34,35.
17.ICC, The Book of Daniel, p. 22.
18.Daniel the Prophet, (London, 1886), p.XXXV.
19.Em relação ao extenso uso do grego na Palestina nesta época ver Martin Hengel, Judaism and Hellenism, I (Philadelphia, 1974), p.104, citado por J.C. Baldwin, Daniel, p. 33.
20.John Bright, The Kingdom of God, p. 163.
21.Vision of the End, p. 129
22.Revue Biblique, 1971, pp. 31-58.
23.The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, (1961),p.57, quoted in D.S. Russell, The Method and Message of Jewish Apocalyptic, (London, 1964), p.226, note 1.
24.Ninian Smart, The Religious Experience of Mankind, (Fontona, 1971), p.304, citada em J.C. Baldwin, op.Cit., p. 48.
25.Old Testament Apocalyptic, (London,1952), p. 157.
26.Em W.G. Lambert, The Background of Jewish Apocalyptic(London,1978),p.9
27.Idid
28.A.K.Grayson, Op.Cit., p.21, citado em J.C.Baldwin, op.Cit., p.53.
29.Mencionado em J.C. Baldwin, Op.Cit., p.56.
30″New Direction in the Study of Apocalyptic”, Journal of Theology and Tehe Curch, VI, 1969, citado em Baldwin, Op.Cit, p.51.
31.Introdoction to the Old Testament, p. 1127.
32.Introdoction to the Old Testament, p.761.
33.The Servant of the Lord, (Oxford, 1965), pp.248-280.
34.”Bemerkungen zum Danielbuch”, VT, XI, 1961, p. 186, citado em Baldwin, Op.Cit., p. 46.
– Conversando sobre o Livro de Daniel
– por Ellen White , Profetas e Reis, Capítulo 35
– por Ruth Alencar com texto base de Luiz Gustavo Assis e vídeos da Tv Novo Tempo
– por Ruth Alencar com comentários de Flávio Josefo e Edward J. Young
– por Ruth Alencar
– por Ruth Alencar com comentários de Flávio Josefo
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– por Ruth Alencar com comentário de Siegfried J. Schwantes
. capítulo 1
. capítulo 2
. Revelação e explicação do sonho de Nabucodonosor (com Comentário de Siegfried J. Schwantes)
. O Reino da Pedra
– por Ruth Alencar
– por Ruth Alencar
– por Ruth Alencar
. capítulo 3
– por Ruth Alencar com comentário de Siegfried J. Schwantes
. Um pouco mais sobre a Mensagem de Daniel 3
– comentários de C. Mervyn Maxwell e Ellen White
. capítulo 4
– comentário de Siegfried J. Schwantes
– por Ruth Alencar com comentários de C. Mervyn Maxwel, Urias Smith e Dr. Cesar Vasconcellos de Souza
. capítulo 5
– por Ruth Alencar com comentários de Siegfried J. Schwantes e C. Mervyn Maxwel
. capítulo 6
– comentários de Siegfried J. Schwantes e C. Mervyn Maxwel
. capítulo 7
– comentários de Siegfried J. Schwantes e C. Mervyn Maxwel.
– por Ruth Alencar
– por Ruth Alencar com comentários de Siegfried J. Schwantes
– com comentários de Siegfried J. Schwantes e José Carlos Ramos
– por Ruth Alencar
– com comentários de Siegfried J. Schwantes e José Carlos Ramos
– por Ruth Alencar
– com comentários de Siegfried J. Schwantes e José Carlos Ramos
– por Ruth Alencar
Continuando nossos estudos sobre Daniel 7
– por Ruth Alencar
. capítulo 8
– com comentários de Siegfried J. Schwantes e C. Mervyn Maxwel
Continuando nossos estudos sobre Daniel 8
– por Ruth Alencar
. capítulo 9
– com comentários de Siegfried J. Schwantes
– por Matheus Cardoso
. capítulo 10
. Daniel 10: O Conflito nos Bastidores
– Comentário de Siegfried J. Schwantes
. capítulo 11
– Comentário de Siegfried J. Schwantes
. capítulo 12
. Daniel 12 : O Tempo do Fim – Parte 1– Por Siegfried J. Schwantes
Os primeiros posts deste estudo sobre o livro de Daniel seguirá esta linha, mas depois virá as profecias de Daniel. Continuem lendo.
grande abraço