Fonte: A Relação entre Religião e Saúde no Discurso de Ellen White (1827-1915)*
Escrito por Everton Ferreira Fróes
A principal fonte de informações sobre a antiga medicina hebraica é a Bíblia, que se refere à medicina quando trata das leis religiosas ou civis, ou quando personagens importantes estão envolvidos. A cura estava nas mãos de Deus, e o papel dos médicos era o de ajudante ou o de instrumento de Deus. Há numerosas referências aos médicos e homens de cura em toda a Bíblia. É sempre implícito, no entanto, que embora o homem possa administrar o tratamento, é Deus quem dá a cura: “Eu sou o Senhor que te sara” (Ex. 15:26). A palavra Rofe título (“curador”), nunca adotada por médicos judeus antigos, e onde ela ocorre, invariavelmente, se refere a médicos estrangeiros, que geralmente eram assumidos como impotentes, porque não foram ajudados por Deus. Sacerdotes hebreus não tinham autoridade de médicos, mas sim ocupavam o cargo de guardas da saúde da comunidade, encarregados de cumprir as leis referentes à práticas de higiene contidas nas leis da Toráh, como por exemplo, em Números 19:11 referindo a contaminação após contato com um cadáver humano, o individuo que praticou o contato deveria ser considerado impuro por sete dias. Algo parecido, mas que só foi informado pela medicina moderna em 1.847 com Dr. Ignácio Semmlweis, época em que morriam muitas mulheres puérperas pela febre puerperal, devido à transmissão de agentes infecciosos contidos nas mãos de médicos, que não realizavam lavagem de mãos com produtos antissépticos após realização de autópsia e partos consecutivos. Outro exemplo está registrado em Deuteronômio capítulo 23:12,13 referente à prática higiênica de cavar com uma pá antes de defecar e depois enterrar as fezes para se evitar a contaminação. Conhecemos hoje a importância de saneamento básico para se evitar a proliferação de doenças infectocontagiosas.
. A singularidade da medicina bíblica encontra-se nos regulamentos para a higiene social, os quais são notáveis, não só para aquela época, mas mesmo para os padrões atuais. Higiene e profilaxia tornaram-se dogmas religiosos destinados a garantir o bem-estar e a preservação da nação. Dos 613 mandamentos, 213 são de natureza médica ou se referem à saúde. Prevenção de epidemias, supressão de doenças derivadas da prática da prostituição, lavagem frequente, cuidados da pele, estritos regulamentos alimentares e sanitárias, regras para a vida sexual, isolamento e quarentena, a observância de um dia de descanso – o sábado – estas e outras disposições inibiam a propagação de muitas das doenças prevalentes entre a população de países vizinhos.
Os hebreus estavam cientes do fato de que as doenças contagiosas são espalhadas pelo contato direto, bem como por roupas, utensílios domésticos, etc. Por isso, para evitar a propagação de epidemias ou doenças infecciosas, eles compilaram uma série de regulamentos sanitários. Incluíam-se, entre eles, o isolamento cautelar ou provisório, de quarentena, queimar roupas infectadas e utensílios, lavagem completa e colocar fora das casas pessoas com suspeita de infecção, e inspeção escrupulosa e purificação da pessoa doente após a recuperação (Lv 13-14). Era proibida a qualquer pessoa entrar em contato com um cadáver ou carniça. Por outro lado, os que sofrem de descargas purulentas, de qualquer parte de seu corpo, exigia-se também uma limpeza profunda de si mesmo e de seus pertences antes de serem autorizados a voltar para o acampamento (Nm 19:7-16; Lev. 15:2-13). As roupas, as armas e os utensílios de soldados que retornam para o acampamento, depois de uma batalha, deviam ser cuidadosamente limpos e desinfetados para prevenir a propagação de doenças, possivelmente, adquiridas durante o contato com o inimigo (Nm 31:20, 22-24). O perigo de doenças intestinais infecciosas que se espalham através de excrementos também foi reconhecido e a Bíblia instrui como manter a limpeza do acampamento (Dt 23:13-14).
A Relação judaica da saúde do corpo: regras alimentares e a teologia Adventista.
J. Feher (1987) em seu livro: Médicos judeus na história da humanidade; no primeiro capítulo, se refere ao valor da vida humana, que para os judeus é embasada na sua filosofia religiosa, no entendimento da relação entre o homem e seu Criador – Lei Religiosa, e a relação entre o homem e o seu semelhante – Lei Civil –, ou seja, para os judeus o valor da vida humana é imensurável, uma vez que a mesma é considerada suprema.
O dia de descanso semanal e o tratamento preventivo de doenças é um dos valores provenientes da filosofia judaica; e, ao longo dos tempos, um grande interesse pela arte da cura, acreditando que, o tratamento e a cura das doenças não interferem na vontade e desígnios de Deus. Feher (1987, p.14) cita o texto de Levítico 18:5[…] ‘‘E guardarei os meus decretos e os meus juízos, cumprindo os quais o homem viverá por eles’’ (Lev.18,5); acrescentando “que, viverá por eles, e não que morrerá por eles”.
A Bíblia se refere às partes do corpo humano e o que cada uma delas pode transmitir impurezas pelo contato. Entretanto, em Ex. 16,26, Deus diz que: ‘‘ Eu sou o Eterno que te cura”, e nesse sentido a palavra cura é entendida como prevenção de doenças, tanto no aspecto físico, espiritual e ético.
É de muita importância para os judeus a associação dos recursos religiosos com as atividades físicas, tais como o sono, e o descanso, que são inteiramente relacionados com a saúde como forma de prevenção, por sua vez, os problemas ligados à ginecologia são extremamente orientados aos homens e as mulheres.
Por isso, encontra-se na Bíblia uma ampla discussão a respeito das patologias sobre as regras do que é puro ou impuro, e revela conceitos médicos e princípios sanitários muito avançados para época em que foram escritos. A ciência médica moderna demorou milhares de anos para descobrir que o sangue é o componente principal da vida humana; entretanto este princípio já havia sido descrito há mais de três mil anos pelos autos do registro das palavras: ‘‘A vida da carne está no sangue” (Levítico 17:11). Em suma, a Toráh judaica é uma das precursoras da ciência moderna em relação à higiene. Entre os relatos bíblicos consta-se que os israelitas eram obrigados a realizar uma limpeza geral na véspera do sábado, e eram obrigados a banhar-se após tocar um cadáver.
As regras encontradas na Bíblia judaica em relação ao uso de alimentos são utilizadas até os dias atuais tanto por Judeus quanto por adventistas, tendo como fundamento um conjunto de regras que distingue, por meio de características, animais “puros” e “impuros”, indicando os animais “puros” para o consumo humano. E por não conter características apropriadas, o consumo da carne de porco foi terminantemente proibido no Pentateuco. Os israelitas também eram proibidos de ingerir sangue e gordura animal.
As mais recentes descobertas da ciência estão em perfeito acordo com essa ideia, portanto fisiologicamente correta, pois o sangue e a gordura animais, quando utilizados como alimentos, são considerados nocivos e prejudiciais à saúde e grande causadores de doenças (J. Feher, 1987). Assim, a filosofia judaica e a adventista observam a Bíblia a têm como meio principal e primordial de ensinamento e referência; como ponto chave para discernimento e aprendizado sobre a ciência e a saúde, conceituando valores e crenças e associando-as com as suas práticas diárias.
Há uma relação similar entre essas regras alimentares, ensinadas através do Pentateuco ao povo hebreu, e a concepção adventista sobre alimentação. Podemos desta forma ver o que descreve Raoul Dederen, (2011) em seu Tratado de Teologia no item saúde e cura, regime alimentar na Bíblia, onde será destacada a dieta original, a vegetariana e, após o dilúvio, a permissão dada ao consumo de carnes limpas: O interesse de Deus no que as pessoas comem, na visão bíblica, se inicia no primeiro capítulo de Gênesis, quando Ele prescreve a dieta original, que será repetida ao longo das escrituras relacionadas à saúde física e ao serviço prestado a Deus. Nesse sentido a dieta vegetariana é apresentada em Gênesis 1:29, antes mesmo do surgimento do pecado, essa dieta era composta de ‘ervas, sementes e frutas’ e, após a introdução do pecado, essa dieta original foi ampliada incluindo plantas herbáceas, frutas e nozes permanecendo, contudo, vegetariana. O dilúvio diminuiu a capacidade da terra em produzir alimentos, daí a permissão para se consumir carne animal, mas com restrição ao uso de carnes com sangue (Gên. 9:3,4) e depois com gordura (Lev.3:17). Introduziu-se também a distinção entre animais próprios para consumo, os “limpos” e impróprios para consumo, os “imundos”. (Dederen, 2011).
Em Levítico capítulo 11 e Deuteronônimo capítulo 14 faz-se a enumeração das características exatas que promovem a distinção entre animais limpos e impuros. Sendo animais puros, os que ruminam e possuem unhas fendidas, outros são impuros. Em geral, as aves de rapina e os carniceiros são considerados impuros, e os aquáticos devem possuir barbatanas e escamas, os demais são impuros. Essas leis, segundo a visão adventista, não deveriam ser ab-rogadas, anuladas, ou somente aplicadas a Israel, pois, Noé que é patriarca para toda a raça humana já tinha conhecimento dessa distinção.
Segundo o tratado de teologia adventista, Jesus e os apóstolos, na condição de judeus, sem dúvida, respeitavam essa distinção, atitudes jamais questionadas pelos seus adversários, os fariseus. Quanto à escrita do Novo Testamento, em nenhuma parte do mesmo, em nada se obliterou ou invalidou essa distinção básica, devendo-se permanecer a prática semelhante e dificilmente seria descontinuada após a cruz, pois o concílio de Jerusalém, registrado em Atos 15 no ano 49 d.C., portanto, após a crucificação de Cristo, nota-se a continuidade e aplicação das leis dietéticas específicas aos cristãos.
A prática pessoal de Pedro, que exercia liderança no grupo de apóstolos, era de evitar alimentos impuros conforme Atos 10:14: “Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi cousa alguma comum e imunda” (Bíblia, 2000 N.T p.138). Segundo a interpretação adventista do texto, é facilmente explicado no próprio contexto da resistência de Pedro em pregar o evangelho aos não judeus, ou gentios como eram chamados. No capítulo 10:28, 34 esta escrito: “a quem se dirigiu, dizendo: Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça; mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo. Então falou Pedro dizendo: Reconheço por verdade, que Deus não faz acepções de pessoas pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (Bíblia, 2000 N.T p.138) Com relação a esse texto, o Comentário Bíblico Adventista do verso 14 afirma que a enfática negação de Pedro até ante a ordem do céu, concorda bem com seu caráter (cf. Mat. 16: 22; Juan 13: 8). Essa sua exclamação recorda a de Ezequiel quando viu o Israel comendo mantimentos imundos (cap. 4: 14). Abster-se das carnes imundas era uma das características mais ressaltantes dos judeus, e uma distinção a qual se atinham rigorosamente. Este tinha sido um dos problemas básicos entre judeus e sírios durante a guerra dos Macabeos (2 Mac. 6: 18-31), e por cumpri-lo os judeus mais fiéis tinham estado dispostos a sacrificar suas vidas. Entretanto, a distinção entre animais limpos e imundos, apresentada claramente no Lev. 11 eram anterior à nação judia. Esta distinção foi estabelecida Por Deus e respeitada por Noé quando fiscalizou a entrada dos animais no arca (Gén. 7: 2; cf. cap. 8: 20). A alimentação original do homem se compunha de frutas, cereais e leguminosas (Gén. 1: 29). E antes que a carne se acrescentasse a este regime alimentá-lo (Gén. 9: 2-3), já se havia apresentado claramente a distinção entre animais limpos e imundos; portanto, não tem uma base sólida a posição de que a proibição dos mantimentos imundos foi retirada quando a lei cerimonial terminou na cruz. Na visão do Pedro estas restrições alimentares quanto a alimentos puros e impuros se referiam de forma simbólica às distinções que faziam os judeus entre eles como sendo “os puros” e aos gentios (não isaraelitas) como sendo “os impuros”. Esta diferença era o que se estava destacando nesse momento segundo o pensamento adventistas tendo com base os seguintes textos bíblicos: ( Gén. 9: 3; Lev. 11; Atos.10:15; Nota Adicional do Lev. 11).
Abaixo podemos ver o uso da palavra “comum” no texto de Atos 10:
O uso da palavra “comum” para referir-se ao “impuro” segundo a lei mosaica refletia a atitude judia para com os gentios. Considerava-se que todos os que não eram judeus eram gente “comum” que estava excluída do pacto de Deus. As práticas espirituais, diferentes das do povo escolhido, eram chamadas “comuns” e como estas coisas “comuns” eram geralmente as que proibiam a lei, todos os costumes ou atos proibidos denominavam-se “comuns”. “Quando as mãos de uma pessoa estavam cerimonialmente impuras também as chamavam “mãos comuns” (em Mar 7: 2 literalmente em grego, “imundas”)” (Nichol, 1988, vol. 6, p. 248).
Dessa forma, podemos observar que, no aspecto de alimentos cárneos próprios e impróprios para alimentação, os adventistas se aproximam muito dos judeus, pois, possuem como base de sua alimentação a Toráh judaica. Dessa forma, diferindo apenas, no sentido que as orientações whiteanas, que serão analisadas mais a frente, são conselhos mais voltados ao vegetarianismo, contudo, terminantemente contra a carne suína e as outras consideradas próprias para alimentação à para serem evitadas.
Diálogo religioso entre judeus e adventistas
O diálogo religioso entre adventistas e judeus é tão forte que já há congregação judaico-adventistas no estado de São Paulo¹ e uma está localizada bem aqui na capital de São Paulo. Seu nome é: Beth Bnei Tsion (Templo/Congregação dos Filhos de Sião), e não é só no Brasil, mas em várias outros países do mundo. Essas congregações têm sido o resultado da iniciativa da Conferência Geral, órgão mundial regulamentador da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em criar um espaço de diálogo inter-religioso entre: Judeus e Adventistas.
Como plataforma dessa iniciativa, a Igreja Adventista, mundialmente, convida tanto os seus membros como os judeus a refletirem e dialogarem suas crenças em comum: O culto ao Deus de Israel; a guarda do sábado; a observância das leis de alimentação dadas na Toráh; o papel central que a Torá e os outros ensinamentos da Bíblia devem ter na vida do ser humano. Por isso essa Igreja coloca como seus os seguintes objetivos internos:
1. Reavivar nos membros adventistas, que são de origem judaica, o amor e a apreciação pelas tradições e cultura de seu povo, reafirmando assim a sua identidade e a sua ligação com a comunidade judaica em geral. Desenvolver no meio adventista, como um todo, um maior conhecimento, apreciação e respeito pelo povo judeu, pelo Judaísmo e por Israel, e, primordialmente, pelas raízes judaicas da fé cristã.
2. Criar um espaço aberto, onde todos, adventistas e não adventistas, possam adorar a Deus, segundo os princípios ensinados na Toráh e mantidos tanto na tradição judaica como na adventista. Lutar contra o anti-semitismo, que se tornou parte de crenças e ensinamentos cristãos através de séculos de intolerância e de interpretações tendenciosas do texto bíblico.
Já quanto aos objetivos externos foram colocados os seguintes itens:
Desenvolver, na sociedade em geral e no meio cristão em específico, o mesmo conhecimento, apreciação e respeito ao povo judeu, ao Judaísmo e a Israel que desejamos exista no meio adventista. Lutar contra o anti-semitismo existente na cultura cristã e ocidental, de modo geral, e contra suas manifestações no seio da sociedade.
Promover entre judeus assimilados, que se simpatizam com adventistas, um reavivamento e despertar da sua identidade judaica e, sobretudo, do amor ao Deus de a Israel, à Sua Palavra e um interesse pela fé e vida que Ele deseja que vivamos.
Prover um local que possa servir de base para um diálogo aberto e respeitoso entre a comunidade adventista, a judaica e entre os membros de ambas as comunidades.
O sábado ou “Shabbat”, rito que é comum aos dois grupos religioso, é um elemento muito importante tanto para o judaísmo quanto para o adventismo, dia, segundo as duas crenças lembram que o homem é fruto da criação de Deus. Além disso, a prática do descanso do Shabbat carrega o conceito de ter sido criado para benefício do homem em termos espirituais e de saúde, conforme podemos ver nos itens abaixo descritos por Jacques B. Doukhan:
1. É um momento de descanso, uma pausa do trabalho e um tempo para ser devotado à atividade espiritual.
2. Enfatiza a visão holística da vida; a shalom tem sido tradicionalmente associada com o Shabbat. Lembre, “Shabbat Shalom.” Este é o momento quando o físico e o espiritual são reconciliados ou re-criados.
3.O Shabbat é dado como um tempo para a família por excelência. Não é um acidente que o quinto mandamento segue o quarto mandamento sobre o Shabbat. Esses são os únicos mandamentos positivos. Nenhuma surpresa então que o livro de Levítico associe a guarda do Shabbat com as relações familiares (Lev 13:3).
5. A lei do Shabbat tem implicações ecológicas. No Shabbat nós afirmamos e lembramos a criação; “os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há,” e desfrutamos a beleza da natureza.
6. O Shabbat é também o dia que derruba barreiras sociais. Não mais escravos ou mestres, não mais estrangeiros ou nativos (Deut 5:14). De fato, o Shabbat contém todas as dimensões de saúde. E, ainda, o Shabbat contém uma dimensão a mais que transcende todas as outras. O Shabbat é o excedente que nos faz nostálgicos e sonhar sobre outro tempo. É a esperança “de novos céus e nova terra” onde “a voz de choro não mais será ouvida” (Isa 65:19), pois nós não mais nos preocuparemos com saúde.”¹
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* – Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Faculdade de Humanidades e Direito, da Universidade Metodista de São Paulo, para a obtenção do grau de Mestre em Ciências da Religião.
1- Maiores detalhes sobre o diálogo religioso entre a Igreja Adventista do Sétimo Dia e os judeus pode ser visto aqui.