O Grande Conflito ou Os Resgatados: Dois Heróis na Idade Média – Capítulo 6 

Por Ellen White

CPB

Já no século nono a Bíblia achava-se traduzida e o culto público era celebrado na língua do povo, na Boêmia. Mas Gregório VII intentava escravizar o povo, e uma bula foi expedida proibindo que o culto público fosse dirigido na língua boêmia. O papa declarava ser “agradável ao Onipotente que Seu culto fosse celebrado em língua desconhecida”.1. 1. Mas o Céu havia providenciado meios para a preservação da igreja. Muitos valdenses e albigenses, expulsos de seus lares pela perseguição, vieram à Boêmia. Trabalharam zelosamente em segredo. Assim foi preservada a verdadeira fé.

Antes dos dias de Huss, houve na Boêmia homens que se levantaram para condenar a corrupção na igreja. Suscitaram-se os temores da hierarquia e iniciou-se a perseguição contra o evangelho. Depois de algum tempo decretou-se que todos os que se afastassem do culto romano deviam ser queimados. Mas os cristãos olhavam à frente, para a vitória de sua causa. Um deles declarou ao morrer: “Levantar-se-á um dentre o povo comum, sem espada nem autoridade, e contra ele não poderão prevalecer.”2. Já se erguia alguém, cujo testemunho contra Roma abalaria as nações.

João Huss era de humilde nascimento e cedo ficou órfão pela morte do pai. Sua piedosa mãe, considerando a educação e o temor de Deus como a mais valiosa das posses, procurou assegurar esta herança ao filho. Huss estudou na escola da província, passando depois para a Universidade de Praga, onde teve admissão como estudante carente. 

Na universidade, Huss logo se distinguiu pelo rápido progresso. Seus modos afáveis e simpáticos lhe conquistaram estima geral. Era adepto sincero da Igreja de Roma e fervorosamente buscava as bênçãos espirituais que ela professava conferir. Depois de completar o curso superior, ingressou no sacerdócio. Atingindo rapidamente a eminência, foi logo chamado à corte do rei. Tornou-se também professor e mais tarde reitor da universidade. O humilde estudante, que de favor recebera educação, tornou-se o orgulho de seu país e seu nome teve fama em toda a Europa.

Jerônimo, que mais tarde se associou a Huss, trouxera consigo da Inglaterra os escritos de Wycliffe. A rainha da Inglaterra, convertida aos ensinos de Wycliffe, era uma princesa boêmia. Por sua influência as obras do reformador foram amplamente divulgadas em seu país natal. Huss inclinava-se a considerar favoravelmente as reformas advogadas. Conquanto não o soubesse, entrara já num caminho que o levaria para longe de Roma. 

Dois quadros impressionam Huss — Por esse tempo chegaram a Praga dois estrangeiros da Inglaterra, homens de saber, que tinham recebido a luz e teriam vindo espalhá-la naquela terra distante. Foram logo silenciados, mas não estando dispostos a abandonar seu propósito, recorreram a outras medidas. Sendo artistas, bem como pregadores, pintaram em local franqueado ao público dois quadros. Um representava a entrada de Cristo em Jerusalém, “humilde, montado em jumento” (Mateus 21:5) e seguido de Seus discípulos, descalços e com trajes gastos pelas viagens. O outro estampava uma procissão pontifical — o papa em suas ricas vestes e tríplice coroa, montado em cavalo magnificamente adornado, precedido de trombeteiros e seguido pelos cardeais e prelados em deslumbrante pompa. 

Multidões vieram contemplar os desenhos. Ninguém deixara de compreender a moral. Houve grande comoção em Praga, e os estrangeiros acharam necessário partir. Mas os quadros produziram profunda impressão em Huss e levaram-no a estudar mais profundamente a Bíblia e os escritos de Wycliffe. 

Embora não estivesse preparado para aceitar todas as reformas advogadas por Wycliffe, Huss viu o verdadeiro caráter do papado, e denunciou o orgulho, a ambição e a corrupção da hierarquia. 

Praga é interditada — Notícias foram levadas a Roma e Huss foi logo chamado a comparecer perante o papa. Obedecer seria expor-se à morte certa. O rei e a rainha da Boêmia, a universidade, membros da nobreza e oficiais do governo, uniram-se num apelo ao pontífice para que fosse permitido a Huss permanecer em Praga e responder por delegação. Em vez de atender ao pedido, o papa procedeu ao processo e condenação de Huss, declarando então achar-se interditada a cidade de Praga. 

Naquela época esta sentença despertava alarma geral. O povo considerava o papa como representante de Deus, possuindo as chaves do Céu e do inferno e possuindo poder para invocar juízos. Acreditava-se que até que o papa fosse servido remover a excomunhão, os mortos eram excluídos das moradas das bem-aventuranças. Todos os serviços religiosos foram suspensos. As igrejas foram fechadas. Celebravam-se os casamentos nos pátios das igrejas. Os mortos eram sepultados sem ritos em fossos ou no campo. 

A cidade de Praga encheu-se de tumulto. Uma classe numerosa denunciou Huss e exigiu que ele fosse entregue a Roma. Para acalmar a tempestade, o reformador retirou-se por algum tempo à sua aldeia natal. Ele não cessou seus labores, mas viajou pelos territórios circunjacentes, pregando a multidões ávidas. Quando serenou a excitação em Praga, Huss retornou a fim de continuar a pregação da Palavra de Deus. Seus inimigos eram poderosos, mas a rainha e muitos nobres eram seus amigos, e o povo em grande parte o apoiava. 

Huss estivera sozinho em seus labores. Agora Jerônimo uniu-se à obra de Reforma. Daí em diante os dois estiveram ligados durante toda a vida, e na morte não deveriam ser separados. Quando às qualidades que constituem a verdadeira força de caráter, Huss era o maior. Jerônimo, com verdadeira humildade, se apercebia do valor do outro e cedia aos seus conselhos. Sob o trabalho unido de ambos, a Reforma estendeu-se rapidamente. 

Deus permitiu que grande luz resplandecesse no espírito daqueles homens escolhidos, revelando-lhes muitos dos erros de Roma; mas eles não receberam toda a luz que devia ser dada ao mundo. Deus estava guiando as pessoas para fora das trevas do romanismo, e Ele os guiou passo a passo, conforme o podiam suportar. Se fosse apresentada como o completo fulgor do Sol do meio-dia para os que durante muito tempo permaneceram em trevas, teria feito com que se desviassem. Portanto Ele a revelou pouco a pouco, à medida que podia ser recebida pelo povo. 

Persistia o cisma na igreja. Três papas contendiam agora pela supremacia. Sua luta encheu a cristandade de tumulto. Não contentes em lançar anátemas, recorriam à compra de armas e à contratação de soldados. É claro que necessitavam de dinheiro e, para arranjá-lo, os dons, ofícios e bênçãos da igreja eram oferecidos à venda.

Com crescente audácia, Huss fulminava as abominações que eram toleradas em nome da religião. O povo acusava abertamente a Roma como causa das misérias que oprimiam a cristandade. 

Novamente a cidade de Praga parecia à borda de um conflito sangrento. Como em eras anteriores, o servo de Deus foi acusado de ser o “perturbador de Israel”. 1 Reis 18:17. A cidade foi novamente posta sob interdito, e Huss retirou-se para a sua aldeia natal. Ele deveria falar a um cenário mais amplo, a toda a cristandade, antes de depor a vida como testemunha da verdade. 

Um concílio geral foi convocado a reunir-se na cidade de Constança [sudoeste da Alemanha], convocado, a pedido do imperador Sigismundo, por um dos três papas rivais, João XXIII. O papa João, cujo caráter e política mal poderiam suportar exame, não ousou opor-se à vontade de Sigismundo. O principal objetivo a ser cumprido era apaziguar o cisma da igreja e desarraigar a “heresia”. Os dois antipapas foram chamados a comparecer, bem como João Huss. Os primeiros foram representados por seus delegados. O Papa João compareceu com muitos pressentimentos, temendo ser chamado a prestar contas pelos vícios que haviam infelicitado a tiara, bem como pelos crimes que a haviam garantido. Não obstante, fez sua entrada na cidade de Constança com grande pompa, acompanhado de eclesiásticos e um séquito de cortesões. Vinha sob um pálio de ouro, carregado por quatro dos principais magistrados. A hóstia era levada diante dele, e as ricas vestes dos cardeais e nobres ofereciam um espetáculo imponente.

Enquanto isto outro viajante se aproximava de Constança. Huss despedira-se dos amigos como se jamais devesse encontrá-los de novo, pressentindo que esta viagem o conduziria à fogueira. Havia recebido salvo-conduto do rei da Boêmia e outro do imperador Sigismundo. Contudo, fez seus planos encarando a possibilidade de morrer. 

Salvo-conduto do rei — Numa carta dirigida aos amigos, disse ele: “Meus irmãos, […] parto com um salvo-conduto do rei, ao encontro de meus numerosos e mortais inimigos. […] Jesus Cristo sofreu por Seus bem-amados; deveríamos, pois, estranhar que Ele nos tenha deixado Seu exemplo? […] Portanto, amados, se minha morte deve contribuir para a Sua glória, orai para que ela venha rapidamente, e para que Ele possa habilitar-me a suportar com lealdade todas as minhas calamidades. […] Oremos a Deus […] para que eu não suprima um til da verdade do evangelho, a fim de deixar a meus irmãos um excelente exemplo a seguir.”3. 

Noutra carta, Huss falou com humildade de seus próprios erros, acusando-se de “ter sentido prazer em usar ricas decorações e haver despendido horas em ocupações frívolas”. Acrescentou, então: “Que a glória de Deus e a salvação das pessoas ocupem tua mente, e não a posse de benefícios e bens. Acautela-te de adornar tua casa mais do que tua vida; e, acima de tudo, dá teu cuidado ao edifício espiritual. Sê piedoso e humilde para com os pobres, e não consumas teus haveres em festas.”4. 

Em Constança, Huss teve assegurada plena liberdade. Ao salvo-conduto do imperador acrescentou-se uma garantia pessoal de proteção por parte do papa. Mas, com violação destas repetidas declarações, em pouco tempo o reformador foi preso por ordem do papa e dos cardeais, e lançado em asquerosa masmorra. Mais tarde foi transferido para um castelo forte além do Reno e ali conservado prisioneiro. O papa foi logo depois entregue à mesma prisão.5. Provara-se perante o concílio ser ele réu dos mais baixos crimes, além de assassínio, simonia e adultério — “pecados que não convém mencionar”. Foi ele finalmente despojado da tiara. Os antipapas também foram depostos, sendo escolhido um novo pontífice. 

Se bem que o próprio papa tivesse sido acusado de maiores crimes que os de que Huss denunciara os padres, o mesmo concílio que rebaixou o pontífice tratou também de esmagar o reformador. O aprisionamento de Huss despertou grande indignação na Boêmia. O imperador, a quem repugnava permitir que fosse violado um salvo-conduto, opôs-se ao processo que lhe era movido. Mas os inimigos do reformador apresentaram argumentos a fim de provar que “não se deve dispensar fé aos hereges, tampouco a pessoas suspeitas de heresia, ainda que estas estejam munidas de salvo-conduto do imperador e reis”.6. 

Enfraquecido pela enfermidade — o ar úmido e impuro do calabouço lhe acarretara uma febre que quase o levou à sepultura — Huss foi finalmente conduzido perante o concílio. Carregado de cadeias, ficou em pé na presença do imperador, cuja honra e boa fé tinham sido empenhadas em defendê-lo. Manteve firmemente a verdade e proferiu solene protesto contra as corrupções da hierarquia. Quando se lhe exigiu optar entre abjurar suas doutrinas ou sofrer a morte, aceitou a sorte de mártir. 

A graça de Deus o susteve. Durante as semanas de sofrimento por que passou antes da sentença final, a paz celestial encheu seu coração. “Escrevo esta carta”, dizia a um amigo, “na prisão e com as mãos algemadas, esperando a sentença de morte para amanhã […] Quando, com o auxílio de Jesus Cristo, de novo nos encontrarmos na deliciosa paz da vida futura, sabereis quão misericordioso Deus Se mostrou para comigo, quão eficazmente me sustentou em meio de tentações e provas.”7. 

Antevisão do triunfo — Na masmorra ele previu o triunfo que teria a verdadeira fé. Em seu sonho viu o papa e seus bispos apagando as pinturas de Cristo que ele desenhara nas paredes da capela de Praga. “Esta visão angustiou-o; mas no dia seguinte viu muitos pintores ocupados na restauração dessas figuras, em maior número e em cores mais vivas. […] Os pintores […] rodeados de imensa multidão, exclamavam: ‘Venham agora os papas e os bispos; nunca mais as apagarão!’” Disse o reformador: “A imagem de Cristo nunca se apagará. Quiseram destruí-la, mas será pintada de novo em todos os corações por pregadores muito melhores do que eu.”8. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 1, cap. 6. 

Pela última vez Huss foi levado perante o concílio, uma vasta e brilhante assembleia — o imperador, os príncipes do império, delegados reais, cardeais, bispos, sacerdotes e uma vasta multidão. 

Chamado à decisão final, Huss declarou recusar-se a abjurar. Fixando o olhar penetrante no imperador cuja palavra empenhada fora tão vergonhosamente violada, declarou: “Decidi-me, de espontânea vontade, comparecer perante este concílio, sob a pública proteção e fé do imperador aqui presente.”9. Intenso rubor avermelhou o rosto de Sigismundo quando o olhar de todos convergiu para ele.

Pronunciada a sentença, iniciou-se a cerimônia de degradação. Sendo de novo exortado a retratar-se, Huss replicou, volvendo-se para o povo: “Com que cara, pois, contemplaria eu os Céus? Como olharia para as multidões de homens a quem preguei o evangelho puro? Não! aprecio a sua salvação mais do que este pobre corpo, ora destinado à morte.” As vestes sacerdotais foram removidas uma a uma, e cada bispo pronunciava uma maldição ao realizar sua parte na cerimônia. Finalmente, “puseram-lhe sobre a cabeça uma carapuça ou mitra de papel em forma piramidal, em que estavam desenhadas horrendas figuras de demônios, com a palavra ‘Arqui-herege’ bem visível na frente. ‘Com muito prazer’, disse Huss, ‘levarei sobre a cabeça esta coroa de ignomínia por Teu amor, ó Jesus, que por mim levaste uma coroa de espinhos.’”10. 7. 

Huss morre na fogueira — Foi então levado para o lugar da execução. Imenso séquito acompanhou-o. Quando tudo estava pronto para ser aceso o fogo, uma vez mais foi ele exortado a renunciar a seus erros. “A que erros”, disse Huss, “renunciarei eu? Não me julgo culpado de nenhum. Invoco a Deus para testemunhar que tudo que escrevi e preguei foi feito com o fim de livrar pessoas do pecado e perdição; e, portanto, muito alegremente confirmarei com meu sangue a verdade que escrevi e preguei.”11. 

Quando as chamas começaram a envolvê-lo, pôs-se a cantar: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”, e assim prosseguiu até que sua voz silenciou para sempre. Um zeloso adepto de Roma, que testemunhou a morte de Huss e a de Jerônimo, que ocorreu pouco depois, disse: “Prepararam-se para o fogo como se fosse para uma festa de casamento. Não soltaram nenhum grito de dor. Ao levantarem-se as chamas, começaram a cantar hinos, e mal podia a veemência do fogo fazer silenciar o seu canto.”12. 

Depois de consumido o corpo de Huss, suas cinzas foram ajuntadas e lançadas no Reno, e assim foram levadas para além do oceano, e daí espalhadas a todos os países da Terra. Em terras ainda desconhecidas elas produziriam fruto abundante em testemunho da verdade. A voz que falara no recinto do concílio em Constança despertou ecos que seriam ouvidos através de todas as eras vindouras. Seu exemplo animaria multidões a permanecerem fiéis em face da tortura e morte. Sua execução patenteou ao mundo inteiro a pérfida crueldade de Roma. Os inimigos da verdade promoveram a causa que em vão pensavam destruir. 

Contudo, o sangue de mais uma testemunha deveria testificar da verdade. Jerônimo havia exortado Huss a que tivesse coragem e firmeza, declarando que se este caísse em algum perigo, ele próprio acudiria em seu auxílio. Ouvindo acerca da prisão do reformador, o fiel discípulo imediatamente se preparou para cumprir a promessa. Sem salvo-conduto, partiu para Constança. Ali chegando, convenceu-se de que apenas se havia exposto ao perigo, sem nada poder fazer em favor de Huss. Fugiu da cidade, mas foi preso e conduzido de volta em ferros. Ao seu primeiro aparecimento perante o concílio, suas tentativas de responder foram defrontadas com clamores: “Às chamas! Que vá às chamas!”13. Foi lançado numa masmorra e alimentado a pão e água. As crueldades da prisão causaram-lhe uma enfermidade que lhe pôs em perigo a vida; seus inimigos, receosos de que ele pudesse escapar, trataram-no com menos severidade, posto que permanecesse na prisão durante um ano. 

Jerônimo se submete ao Concílio — A violação do salvo-conduto de Huss suscitara uma tempestade de indignação. O concílio decidiu, em vez de queimar Jerônimo, obrigá-lo a retratar-se. Ofereceu-lhe a alternativa de abjurar ou morrer na fogueira. Enfraquecido pela moléstia, pelos rigores do cárcere e pela tortura da ansiedade e apreensão, separado dos amigos e desanimado pela morte de Huss, a fortaleza de Jerônimo cedeu. Comprometeu-se a aderir à fé católica e aceitou o voto do concílio ao este condenar as doutrinas de Wycliffe e de Huss, exceção feita, contudo, às “sagradas verdades” que eles haviam ensinado.14. 

Mas na solidão do calabouço ele viu mais claramente o que havia feito. Pensou na coragem e fidelidade de Huss e, em contraste, refletiu em sua própria negação da verdade. Pensou no divino Mestre que por amor a ele suportara a morte na cruz. Antes de sua retratação encontrara conforto, em todos os sofrimentos, na certeza do favor de Deus. Agora, porém, o remorso e a dúvida lhe torturavam o espírito. Sabia que outras retratações ainda teriam de ser feitas antes que pudesse estar em paz com Roma. O caminho em que estava entrando apenas poderia terminar em completa apostasia. 

Jerônimo se arrepende e adquire nova coragem — Logo foi ele novamente levado perante o concílio. Sua submissão não satisfizera aos juízes. Apenas renunciando sem reservas à verdade poderia Jerônimo preservar a vida. Decidira-se, porém, a confessar sua fé e seguir às chamas seu irmão mártir. 

Renunciou à abjuração anterior e, como moribundo, exigiu solenemente a oportunidade de apresentar sua defesa. Os prelados insistiram em que ele meramente afirmasse ou negasse as acusações lançadas contra sua pessoa. Jerônimo protestou contra tal crueldade e injustiça: “Conservastes-me encerrado durante trezentos e quarenta dias numa horrível prisão”, disse ele; “trazeis-me depois diante de vós e, dando ouvidos a meus inimigos mortais, recusais-vos a ouvir-me […] Tende cuidado em não pecar contra a justiça. Quanto a mim, sou apenas um fraco mortal; minha vida não tem senão pouca importância; e quando vos exorto a não lavrar uma sentença injusta, falo menos por mim do que por vós.”15. 

Seu pedido foi finalmente atendido. Na presença dos juízes, Jerônimo ajoelhou-se e pediu que o divino Espírito lhe dirigisse os pensamentos, de modo que nada falasse contrário à verdade ou indigno de seu Mestre. Para ele neste dia cumpriu-se a promessa: “Quando vos entregarem, não cuideis em como, ou o que haveis de falar […] visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós”. Mateus 10:19, 20. 

Jerônimo havia estado durante um ano inteiro numa masmorra, impossibilitado de ler ou mesmo ver. No entanto, seus argumentos foram apresentados com tanta clareza e força como se houvesse tido oportunidade tranquila para o estudo. Indicou aos ouvintes a longa série de homens santos que haviam sido condenados por juízes injustos. Em quase todas as gerações houve aqueles que procuraram elevar o povo de seu tempo, e que foram rejeitados. O próprio Cristo foi condenado como malfeitor, por um tribunal injusto. 

Jerônimo declarou agora o seu arrependimento e deu testemunho da inocência e santidade do mártir Huss. “Conheci-o desde a meninice”, disse ele. “Foi um homem excelente, justo e santo; foi condenado, a despeito de sua inocência. […] Estou pronto para morrer. Não recuarei diante dos tormentos que me estão preparados por meus inimigos e falsas testemunhas, que um dia terão de prestar contas de suas imposturas perante o grande Deus, a quem nada pode enganar.” 

Jerônimo prosseguiu: “De todos os pecados que tenho cometido desde minha juventude, nenhum pesa tão gravemente em meu espírito e me causa tão pungente remorso, como aquele que cometi neste lugar fatídico, quando aprovei a iníqua sentença dada contra Wycliffe e contra o santo mártir, João Huss, meu mestre e amigo. Sim! confesso-o de todo o coração e declaro com horror, que desgraçadamente fraquejei quando, por medo da morte, condenei suas doutrinas. Portanto suplico […] a Deus todo-poderoso, Se digne perdoar meus pecados, e em particular este, o mais hediondo de todos.” 

Apontando para os juízes, disse com firmeza: “Condenastes Wycliffe e João Huss. […] As coisas que eles afirmaram, e que são irrefutáveis, eu também as entendo e declaro como eles.” 

Suas palavras foram interrompidas. Os prelados, trêmulos de cólera, exclamaram: “Que necessidade há de mais provas? Contemplamos com nossos próprios olhos o mais obstinado dos hereges!” 

Sem se abalar com a tempestade, Jerônimo exclamou: “Ora! supondes que receio morrer? Conservastes-me durante um ano inteiro em horrível masmorra, mais horrenda que a própria morte. […] Não posso senão exprimir meu espanto com tão grande barbaridade para com um cristão.”16. 

Destinado à prisão e morte — De novo irrompeu a tempestade de cólera, e Jerônimo foi levado precipitadamente à prisão. Havia, contudo, alguns nos quais suas palavras produziram profunda impressão, e que desejavam salvar-lhe a vida. Foi visitado por dignitários e instado a submeter-se ao concílio. Brilhantes perspectivas lhe foram apresentadas como recompensa. 

“Provai-me pelas Sagradas Escrituras que estou em erro, e abjurarei”, disse ele. 

“As Sagradas Escrituras!” exclamou um de seus tentadores. “Então tudo deve ser julgado por elas? Quem as pode entender antes que a igreja as haja interpretado?” 

“São as tradições dos homens mais dignas de fé do que o evangelho de nosso Salvador?” replicou Jerônimo. 

“Herege! Arrependo-me de ter-me empenhado tanto tempo contigo. Vejo que és impulsionado pelo diabo.”17. 10. 

Sem demora foi levado ao mesmo local em que Huss rendera a vida. Ele fez o trajeto cantando, tendo o semblante iluminado de alegria e paz. Para ele, a morte havia perdido o terror. Quando o carrasco, estando para acender a fogueira, passou por detrás dele, o mártir exclamou: “Ponha fogo à minha vista! Se eu tivesse medo, não estaria aqui.” 

Suas últimas palavras foram uma oração: “Senhor, Pai todo-poderoso, tem piedade de mim, e perdoa os meus pecados; pois sabes que sempre amei Tua verdade.”18. As cinzas do mártir foram reunidas e, tal como ocorrera com as de Huss, lançadas ao Reno. Assim pereceram os fiéis porta-luzes de Deus. 

A execução de Huss acendera uma chama de indignação e horror na Boêmia. A nação inteira declarou ter sido ele um fiel ensinador da verdade. O concílio foi acusado de assassinato. Suas doutrinas atraíam agora maior atenção do que antes, e muitos foram levados a aceitar a fé reformada. O papa e o imperador uniram-se para aniquilar o movimento, e os exércitos de Sigismundo foram lançados contra a Boêmia. 

Surgiu, porém, um libertador. Zisca, um dos mais hábeis generais de seu tempo, foi o chefe dos boêmios. Confiando no auxílio de Deus, o povo resistiu aos mais poderosos exércitos que contra ele se poderiam levar. Reiteradas vezes o imperador invadiu a Boêmia, apenas para ser repelido. Os hussitas ergueram-se acima do temor da morte, e nada poderia resistir a eles. O bravo Zisca morreu, mas seu lugar foi preenchido por Procópio, que em alguns sentidos era um líder ainda mais capaz. 

O papa proclamou uma cruzada contra os hussitas. Uma imensa força foi lançada contra a Boêmia, tão-somente para sofrer terrível derrota. Outra cruzada foi proclamada. Em todos os países papais da Europa, homens, dinheiro e munições de guerra foram reunidos. Multidões congregavam-se sob o estandarte papal. 

A numerosa força entrou na Boêmia. O povo arregimentou-se para repeli-la. Os dois exércitos se aproximaram um do outro, até que havia entre eles apenas um rio. “Os cruzados constituíam força grandemente superior, mas em vez de se arremessarem através da torrente e travar batalha com os hussitas a quem de longe haviam vindo combater, ficaram a olhar em silêncio para aqueles guerreiros.”19. 17. 

Subitamente, misterioso terror caiu sobre os soldados. Sem desferir um golpe, aquela poderosa força debandou e espalhou-se, como que dispersa por um poder invisível. O exército hussita perseguiu os fugitivos e imenso despojo caiu na mão dos vitoriosos. A guerra, em vez de empobrecer os boêmios, enriqueceu-os. 

Poucos anos mais tarde, sob um novo papa, promoveu-se ainda outra cruzada. Vasto exército entrou na Boêmia. As forças hussitas recuaram diante deles, arrastando os invasores cada vez mais para o interior do país, levando-os a contar com a vitória já alcançada. 

Finalmente o exército de Procópio avançou para dar-lhes combate. Quando se ouviu o ruído da força que se aproximava, mesmo antes que os hussitas estivessem à vista, um pânico de novo caiu sobre os cruzados. Príncipes, generais e soldados rasos, arrojando as armaduras, fugiram em todas as direções. A derrota foi completa, e novamente um imenso despojo caiu nas mãos dos vitoriosos. 

Assim, pela segunda vez, vasto exército de homens aguerridos, treinados para a batalha, fugiu sem dar um golpe, diante dos defensores de uma nação pequena e fraca. Aquele que pôs em fuga os exércitos de Midiã diante de Gideão e seus trezentos, uma vez mais estendera Sua mão. Juízes 7:19-25; Salmos 53:5. 

Traídos pela diplomacia — Os líderes papais recorreram finalmente à diplomacia. Adotou-se um compromisso mútuo que, traindo aos boêmios, entregou-os ao poder de Roma. Os boêmios haviam especificado quatro pontos como condições de paz com Roma: (1) livre pregação da Bíblia; (2) o direito da igreja toda, tanto ao pão como ao vinho na comunhão, e o uso da língua materna no culto divino; (3) a exclusão do clero de todos os ofícios e autoridades seculares; e (4) nos casos de crimes, a jurisdição das cortes civis tanto para o clero como para os leigos. As autoridades papais concordaram que os quatro artigos fossem aceitos, “mas que o direito de os explicar […] deveria pertencer ao concílio — ou, em outras palavras, ao papa e ao imperador”.20. 18. Roma ganhou, pela dissimulação e fraude, o que não tinha conseguido pelo conflito. Aplicando sua própria interpretação aos artigos hussitas, como à Escritura Sagrada, poderia perverter seu sentido, de modo conveniente a seus propósitos. 

Uma classe numerosa na Boêmia, vendo que isso traía sua liberdade, não se conformou com o tratado. Surgiram dissensões, que levaram à contenda entre eles próprios. O nobre Procópio sucumbiu, e acabou a liberdade da Boêmia. 

Exércitos estrangeiros invadiram de novo a Boêmia, e aqueles que permaneceram fiéis ao evangelho foram sujeitos a uma perseguição sanguinolenta. Contudo, sua firmeza era inabalável. Obrigados a refugiar-se nas cavernas, congregavam-se ainda para ler a Palavra de Deus e unir-se em Seu culto. Por meio de mensageiros enviados secretamente a diversos países, souberam “que entre as montanhas dos Alpes havia uma antiga igreja, apoiada no fundamento das Escrituras e protestando contra as corrupções idolátricas de Roma”.21. 19. Com grande alegria iniciou-se correspondência com os cristãos valdenses. 

Firmes no evangelho, os boêmios esperaram através da noite de sua perseguição, ainda volvendo os olhos para o horizonte na hora mais tenebrosa, semelhantes aos homens que esperam a manhã. 

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