Fonte: Comentário Bíblico internacional
Autoria e destinatários
Este evangelho, como os outros três no cânon do Novo Testamento, foi escrito de forma anônima. Que o seu autor foi João Marcos, no entanto, é atestado por autores eclesiásticos do século II, com o Papias, Ireneu, Clemente de Alexandria etc. João Marcos viveu em Jerusalém com Maria, sua mãe, durante o período inicial da Igreja, sendo a sua casa um local de encontro nos primeiros anos (At 12.12) e talvez o principal local de encontros em Jerusalém. Provavelmente foi o local da “Última Ceia” de Jesus e da sua aparição na noite do domingo de Páscoa. Marcos acompanhou Paulo e Barnabé na primeira etapa da primeira viagem missionária (At 13.4-13). Mais tarde, ele serviu com Barnabé em Chipre (At 15.39) e, mais tarde ainda, estava em Roma (Cl 4.10; Fm 24; 2Tm 4.11; também IP e 5.13, em que “Babilônia” , como em Ap 14.8, parece ser um código para “Roma” ).
O fato de que foi enquanto Marcos estava em Roma que ele escreveu esse evangelho é atestado por Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio e Jerônimo. Evidências disso deduzidas do próprio evangelho podem ser encontradas no número considerável de termos latinos que Marcos em prega, preferindo estes aos equivalentes gregos, e.g., suas palavras para “carrasco” (6.27), “vasilhas de metal” (7.4), “imposto” (12.14), “pequeninas moedas de cobre” (12.42), “açoitar” (15.15), “pretório” (15.16), “centurião” (15.39). Mais uma indicação, embora decididamente equivocada, de que o evangelho de Marcos foi escrito originariamente para cristãos em Roma, onde ele o produziu, consiste na menção de “Rufo” em 15.21, que, por inferência, era conhecido por todos, e sua possível identificação com o cristão que vivia em Roma chamado “Rufo”, mencionado em Romanos 16.13 (pressupondo que Rm 16 foi dirigido a cristãos em Roma; veja comentários ad loc.). Mais evidências na mesma direção podem ser deduzidas da expressão, em 6.48, “quarta vigília da noite”; acerca da qual v. comentário. Independentemente de se o evangelho de Marcos foi escrito para cristãos em Roma ou não, certamente foi escrito principalmente para gentios. Isso está indicado (a) na forma em que são explicados cuidadosamente os costumes e termos judaicos (e.g., 7.2ss; 12.42; 14.12; 15.42) e (b) na forma em que as palavras e frases aramaicas que Marcos insere periodicamente são sempre traduzidas imediatamente para o grego (e.g., 3.17; 5.41; 7.11, 34; 14.36; 15.22,34).
Fontes
Não há evidência de Marcos ter sido testemunha ocular da maior parte dos eventos da vida de Jesus que ele descreve no seu evangelho. Alguns estudiosos sugerem, no entanto, que o “jovem” mencionado em 14.51,52 seja a alusão anônima do autor a si mesmo (acerca de evidências disso, v. comentário ad loc.); nesse caso, Marcos teria sido testem unha da sequência do aprisionamento de Jesus.
Não há prova concreta de que o autor tenha usado uma narrativa escrita anterior como fonte do seu evangelho, embora alguns afirmem que ele usou esse tipo de narrativa Marcos (agora perdida) da história da Paixão. Agostinho cria que Marcos tivesse elaborado o seu evangelho ao condensar o relato mais extenso de Mateus, e essa era a opinião comum até o século XIX. Hoje se crê quase universalmente que Marcos foi o primeiro evangelho, e que foi usado como fonte para a composição dos evangelhos de Mateus e Lucas. Evidências disso são encontradas na supressão de palavras e frases que Mateus e Lucas fazem as descrições à medida que parecem ter sido consideradas supérfluas, para dar lugar às seções longas de material adicional que eles queriam registrar. Outras evidências disso são que M ateus e Lucas tendem a melhorar o estilo de Marcos quando relatam os mesmos incidentes, ou então a omitir completamente as afirmações de Marcos que poderiam ofender ou desconcertar, ou ainda tendem a apresentá-las de forma menos provocativa (e.g., 4.38; 5.26; 10.17,35-37; 14.33,37,71; 15.34). V. tb. p. 1.075ss.
A fonte principal de Marcos para escrever o seu evangelho foram a pregação e a instrução do apóstolo Pedro, o que é atestado por Papias, Justino Mártir, o Prólogo anti-Marcião do evangelho de Marcos, Ireneu e Clemente de Alexandria, todos do século II. O testemunho de Papias (bispo de Hierápolis c. 140d.C.) reflete a opinião acerca desse tópico logo no início do século, pois a sua declaração é, na verdade, uma citação de um “Presbítero” anônimo que já estava morto quando Papias escreveu. As evidências que vêm do próprio evangelho em apoio à sugestão de Pedro ter influenciado Marcos na sua narrativa dos eventos são as seguintes: (a) A proeminência de Pedro na história, incluindo alusões a ele que ninguém, a não ser ele mesmo, teria lembrado (e.g., 16.7); (b) o fato de que em todas as cenas descritas Pedro estava presente (IP e 5.1 sugere que ele testem unhou a crucificação de Jesus); e que, em algumas delas (e.g., 5.37; 9.2; 14.33,66-72 etc.), ele era um dos poucos presentes; (c) a inclusão desses detalhes no relato sugere que a descrição em questão se originou num a testemunha ocular (e.g., 1.19; 4.38; 6.39; e menções como os atos e gestos de Jesus como são relatados em 3.5; 7.33; 8.23; 10.16 etc.).
Data
O martírio de Pedro por meio de crucificação foi predito por Jesus (Jo 21.18,19; 2Pe 1.14). H á autores cristãos do início da Era Cristã que afirmam que isso ocorreu em Roma, em conexão com a perseguição de Nero aos cristãos em 64 d.C. Mas esses autores expressam opiniões diferentes acerca de se Pedro estava vivo ou não quando Marcos escreveu esse evangelho. Clemente de Alexandria e Orígenes criam que Pedro ainda estava vivo, enquanto Ireneu e o autor do Prólogo anti-Marcião do evangelho de Marcos acreditavam que ele estava morto. Pode-se deduzir que essa também era a opinião de Papias, em bora ele não afirme isso categoricamente.
Essa é a opinião mais defendida hoje, com a consequência de que se considere em geral que o evangelho de Marcos tenha sido escrito c. 65 d.C. Harnack, no entanto, tinha a opinião de que o evangelho foi escrito “durante a sexta década do século I, no mais tardar” (Date o f the Acts and o f the Synoptic Gospels, 1911, p. 133), pois para ele não era fato incontestável que Pedro tivesse morrido antes de Marcos ter escrito o evangelho. Harnack achava que, em virtude de como termina o livro de Atos, não precisava de explicações o fato de esse livro ter sido escrito antes da morte de Paulo, e isso em 62 d.C., ou perto disso, e, nesse caso, o “primeiro livro” de Lucas (At 1.1), i.e., seu evangelho, teria sido escrito pouco antes disso, e o evangelho de Marcos, por consequência (muito evidentemente uma fonte do evangelho de Lucas), teria sido ainda antes. É difícil perceber qualquer razão convincente para se abandonar a argumentação de Harnack. N a sua referência ao relato de Marcos, T. W. Manson declarou: “A composição do evangelho pode ser datada vários anos antes da época comumente aceita” (Studies in the Gospels and Epistles, p.45), sugerindo entre 58 e 65 d.C. (ibid., p. 5).
Características
O evangelho de Marcos é o mais breve dos evangelhos do cânon. E conciso e repleto de ação, uma característica que seria cativante para a mente prática dos romanos, para quem, sem dúvida, foi originariam ente escrito. A parte dedicada aos atos de Jesus, em comparação com as suas palavras, é maior no evangelho de Marcos do que nos outros. Dezoito milagres são registrados, em contraste com apenas quatro parábolas completas. Nota-se um número excepcionalmente grande de relatos de expulsão de demônios por parte de Jesus (1.23-27,32-34; 3.11,22-27; 5.1-20; 7.25-30; 9.17-29). O evangelho fornece poucos comentários acerca desses acontecimentos, e em geral as ações falam por si mesmas.
Diferentemente de biografias comuns, o evangelho de Marcos não relata nada acerca do nascimento de Jesus, seu crescimento e aparência; tampouco especifica a duração do seu ministério público, nem sua idade na época da crucificação. Cerca de um terço do relato é dedicado à descrição dos oito dias entre a entrada de Jesus montado no jumento e sua ressurreição.
Tema
A tese desse evangelho é que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Isso é afirmado no prólogo do livro (1.1). À medida que a história se desenvolve, Marcos mostra como Jesus foi proclamado “Filho de Deus” por seu Pai celestial (1.11; 9.7), pelos demônios, que possuíam conhecimento sobrenatural (3.11; 5.7), e por si mesmo (12.6; 14.61,62). O clímax da história é atingido quando um homem de nacionalidade romana faz essa proclamação (15.39), sendo a intenção clara do autor que a sua ação fosse imitada por aqueles de nacionalidade romana que viessem a ler o seu livro.
ANÁLISE
I. EVENTOS INTRODUTÓRIOS (1.1-13)
II.O MINISTÉRIO NA GALILÉIA (1.14— 7.23)
III. A JORNADA NO NORTE (7.24—8.26)
IV. A JORNADA PARA JERUSALÉM (8.27— 10.52)
V. O MINISTÉRIO EM JERUSALÉM (11.1— 13.37)
VI. A PAIXÃO (14.1— 15.47)
VII. A RESSURREIÇÃO (16.1-20)
Marcos escreve em um estilo simples e direto que fica igualmente evidente tanto em grego quanto na tradução em português. O uso frequente da parataxe (e.g., 1.9-13) é típico da escrita não sofisticada de qualquer língua, mas no caso de Marcos também pode ser um reflexo da fala semítica de seu suposto informante, Pedro. O tempo presente histórico (e.g., 2.15,17,18), um elemento do estilo bastante vívido tão característico de Marcos (ocorre usualmente no início — ou próximo — de um parágrafo em que uma nova cena é introduzida), encontra paralelos gregos em todas as épocas, mas pode também ser influenciado pelo uso em aramaico da frase participial. Outros sinais semíticos podem ser encontrados no seu uso comum do presente perifrástico (“ele está comendo”, em vez do que é com um ente usado no grego: “ele come”), que era possível em grego, mas frequente no aramaico. (Somente Lucas tem uma proporção maior de presentes perifrásticos; ele os usa como imitação do estilo da LXX, enquanto os de Marcos ocorrem em função da tradução mental do aramaico.) A ordem das palavras nas frases em Marcos com frequência reflete o estilo semítico; enquanto é possível (e comum com verbos de dizer) colocar o verbo em primeiro lugar no grego normal, nas línguas semíticas o verbo regularmente vem em primeiro lugar; isso ocorre com frequência no NT, e especialmente em Marcos. O grego de Marcos também contém uma série de palavras tomadas do latim: e.g., da terminologia militar e oficial: praitõrion, “pretório”; legiõn, “legião”; kentyriõn, “centurião”; Kaisar, “César” ; phragelloõ, “chicotear” (do latim vulgar fragellum, “chicote” = flagellum); spekoulatõr, “espião”, “observador” , “executor”; da term inologia com ercial: modios, “m edida para secos”; dênarion, “denário”; kodrantês (a menor moeda romana, 64 avos de um denário); e uma expressão idiom ática latina, to hikanon poiein (15.15) literalm ente = lat. satisfacere, “satisfazer”. A dedução que se deve fazer do uso que Marcos faz desses latinismos não é, como alguns sugerem, que Marcos foi traduzido de um original latino, mas que ele reproduz fielmente o vernáculo do Império Romano.
O jovem e rico governante (10.17-31).
(Textos paralelos: Mt 19.16-30; Lc 18.18-30.) Como um destaque complementar à verdade do v. 15, em que a salvação é retratada como um presente gratuito, a história narrada aqui indica o custo imenso da salvação para algumas pessoas. Um homem rico (v. 22), Marcos 10.17 apesar de ter obedecido à Lei de Moisés da melhor forma possível (v. 20), estava espiritualmente insatisfeito mesmo assim e, por isso, perguntou a Jesus o que ele precisava para herdar a vida eterna (v. 17). A sua forma de se dirigir a Jesus, no entanto, foi inadequadamente subserviente, pois, violando os costumes normais dos judeus, ele o saudou como Bom mestre. Jesus o censurou por isso, lembrando-o de que bom era uma designação que normalmente era reservada para Deus, uma vez que somente Deus é bom, sem necessidade de qualificação (v. 18). Jesus com isso, não estava negando que era “Deus nem que era “bom, mas simplesmente censurava o fato de ser tratado assim por alguém que, sem dúvida, estava totalmente inconsciente da sua natureza divina. Como resposta à pergunta do homem, Jesus tentou aprofundar nele a consciência do pecado ao citar os mandamentos da chamada “Segunda Tábua do Decálogo” (v. 19; a ordem “Não cobiçarás é aqui interpretada como não enganarás ninguém). A implicação a ser deduzida da resposta do homem de que ele tinha obedecido a todas essas leis desde a juventude (v. 20) é que ele não tinha compreensão de tudo que essas exigências implicavam. Havia qualidades nesse homem, no entanto, que fizeram Jesus amá-lo profundam ente (v. 21a). Mas a forma em que ele expressou esse amor para com o homem não foi uma diminuição das exigências para assim ganhá-lo mais facilmente para o grupo de seguidores, mas o ato de colocar o dedo com total franqueza no que estava impedindo a sua busca pela vida eterna, ou seja, a sua riqueza. Dizendo-lhe, portanto, que lhe faltava somente uma coisa (que, supostamente, era a sua dedicação imparcial à causa e ao Reino de Deus), ele lhe ordenou que vendesse tudo o que possuía, dando a renda disso aos pobres, e viesse a ser um dos seus discípulos (v. 21). Mas o homem não conseguiu fazer isso, e, em contraste com a ansiedade com que havia corrido em direção a Jesus (v. 17), afastou-se triste (v. 22; cf. Mt 13.45,46). Comentando a decisão do homem, Jesus disse aos discípulos que, de acordo com a ordem natural das coisas, era impossível um homem rico receber a salvação, assim como era impossível que o camelo, o maior animal na Palestina naquela época, passasse pelo fundo de uma agulha (v. 25; citando um provérbio conhecido na época que era memorável por ser bastante grotesco). Ele se apressou, no entanto, em atenuar a perplexidade dos discípulos diante dessa sua declaração ao lembrá-los de que todas as coisas são possíveis para Deus (v. 27). Diante da réplica de Pedro de que o que o homem rico não havia feito fora realizado por ele e seus companheiros (v. 28), Jesus respondeu que esses receberiam cem vezes mais, já no tempo presente (embora a perseguição viesse a ser constante na sua vida) e, na era futura, a vida eterna (v. 30). Mas ele os advertiu de que não deveriam ficar satisfeitos com o que tinham feito, informando-os de que muitos dos seus discípulos, proeminentes agora em virtude de sua piedade manifesta, seriam avaliados em grau muito menor do que alguns dos seus devotos bem menos notáveis, que mesmo assim tinham um valor maior aos olhos de Deus (v. 31).