Fonte: Evangelho em Conflito: A carta de Paulo aos Gálatas
“Porque se a herança é por lei, já não é por promessa; mas Deus concedeu a Abraão por promessa” (Gálatas 3:18).
Nem todas as passagens bíblicas são igualmente fáceis de entender e Gálatas 3:15- 18 é um dos mais provocativos. Parte da razão para sua dificuldade é que ele usa formas rabínicas de argumento em vez do tipo de raciocínio que faz sentido em nossa cultura.
Mas podemos entender o significado dos versículos 15 a 18 mais facilmente se lembrarmos onde o apóstolo estava com seu argumento. Os versos 6 a 9 deixam absolutamente claro que Abraão foi justificado pela fé e que a promessa que veio por meio de Abraão aos gentios foi baseada somente na fé. “Portanto, os que vivem pela fé são abençoados juntamente com Abraão, o homem de fé” (versículo 9, NVI).
Se for assim, o que dizer do caminho da Lei, que os judaizantes ensinavam como método de ser justo diante de Deus? Nos versos 10 -14, Paulo argumenta que o caminho da Lei não trouxe nada além de uma maldição. Mas é aí que o evangelho de Cristo entra: Cristo levou a maldição da Lei quebrada na árvore do Calvário, para que a promessa de Abraão pudesse vir aos gentios pela fé.
Mas, alguns podem perguntar: qual é o lugar da Lei? Onde isso se encaixa no plano de Deus? Paulo dedicará os versículos 15 a 25 respondendo a essas perguntas. Abraão e Moisés (Gálatas 3: 15-20) O primeiro segmento de sua resposta aparece nos versículos 15-18. Em sua mente, subjacente a esta passagem está o relacionamento entre Abraão, através de quem veio a promessa, e Moisés, por meio de quem veio a Lei. Paulo defende a superioridade do caminho de Abraão (o caminho da fé), sobre o caminho de Moisés (o caminho da Lei).
Mas todos esses diálogos têm um problema inerente: “Afinal, o Deus que deu a promessa a Abraão e o Deus que deu a Lei a Moisés é o mesmo Deus! […] Não podemos colocar Abraão e Moisés, a promessa e a Lei um contra o outro, aceitando um e rejeitando o outro […]. Se Deus é o autor de ambos, Ele deve ter algum propósito para ambos. Qual é, então, a relação entre os dois?”1
Os versos 15 a 18 discutem o aspecto negativo da relação entre a promessa e a Lei; isto é, a vinda da Lei não anulou a promessa de Deus. Os versículos 19 a 25 lidam com o lado positivo da questão.
O objetivo geral dos versículos 15-18 é bastante claro, embora o argumento não reflita o raciocínio moderno. O propósito de Paulo é demonstrar a superioridade do caminho da fé e da graça sobre o caminho da Lei, como meio de se tornar justo diante de Deus.
Sua primeira linha de ataque é apontar para o fato de que o caminho da fé é mais antigo que o caminho da Lei. Isso não é difícil de provar, porque Abraão precedeu Moisés por cerca de 430 anos. Embora alguns estudantes se desviem da referência exata de 430 anos, seu ponto é claro: que a promessa pela fé precedeu a entrega formal da Lei no Sinai por um longo período de tempo.
Então que? Isso é óbvio! você pode estar pensando. É aí que entra o argumento de Paulo com relação à vontade humana. Ele reconhece que é apenas um exemplo humano (versículo 15) e, portanto, não é um paralelo exato dos atos de Deus; no entanto, ele acredita que lança luz sobre a questão. Seu argumento procede da seguinte forma:
1) Uma vontade ou aliança humana não pode ser anulada, ou algo adicionado a ela uma vez que seja ratificada. A única pessoa que pode acrescentar algo ou alterar é o testador, que estabeleceu as disposições do testamento em primeiro lugar.
2) A Lei, que veio 430 anos após a promessa, não alterou o acordo anterior, ou a aliança, de forma alguma (versículo 17). Não podia; esse não era o seu propósito.
3) Portanto, a herança ainda é por promessa, e não por lei.
Cristo, a “semente” da promessa (Gálatas 3: 15-20)
A promessa a Abraão – a aliança com ele – é absolutamente central para Paulo, em Gálatas 3. Ele levantou o tema já no versículo 8: “Por meio de ti todas as nações serão abençoadas” (NVI), citando Gênesis 12:2 e 3. Então, em Gálatas 3:16, ele se referiu à promessa de Gênesis 13:15 e 17: 7, 8, na qual ele baseia seu argumento um tanto estranho (para nós) de “ao seu descendente” (semente) em vez de “a seus descendentes” (sementes).”E”, lemos, ” Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência (Gênesis 17: 7). Depois de enfatizar, em bom estilo rabínico, que Gênesis usa o singular em vez do plural, Paulo prossegue argumentando que o descendente no singular é Cristo (Gl 3:16).
Paulo sabia, é claro, que a referência literal às promessas em Gênesis era para os descendentes físicos de Abraão, que deveriam receber a terra de Canaã. Assim, muitas traduções apresentam a palavra hebraica de Gênesis 17: 7 como “descendentes”, embora o original esteja no singular. Mas é um “singular coletivo”,2 que pode ser traduzido como singular ou plural. Assim, embora a promessa se destinasse principalmente aos muitos descendentes físicos de Abraão (tantos quanto o pó da terra” [Gn 13:16]), o apóstolo afirma “que isso não esgotou seu significado; nem era a referência final na mente de Deus. Na verdade, não poderia ter sido, pois Deus disse que na descendência de Abraão todas as famílias da Terra seriam abençoadas […]. Paulo percebeu que tanto a “terra” prometida quanto a “semente” prometida seriam, em última análise, espirituais. O propósito de Deus não era apenas dar a terra de Canaã aos judeus, mas dar a salvação (uma herança espiritual) aos crentes que estão em Cristo.3
G. Walter Hansen nos ajuda a compreender as implicações mais amplas do uso do singular de descendentes ou semente, quando ele escreve que “devemos perceber que a definição de Paulo de semente contradiz a interpretação nacionalista judaica desse termo. Os judeus estavam convencidos de que o termo semente se referia aos descendentes físicos de Abraão, o povo judeu. Portanto, eles acreditavam que era absolutamente necessário pertencer à nação judaica para receber as bênçãos prometidas a Abraão”.4 Claro, essa lógica formou a base do porquê os cristãos gentios precisavam ser circuncidados e observar a Lei de Moisés para serem justos diante de Deus.
Mas a maneira como Paulo usou a semente em Gálatas 3 é um pouco mais complexa do que simplesmente o fato de que seu uso no singular se referia a Cristo. No versículo 29, lemos: “Se sois de Cristo, certamente sois da raça de Abraão e herdeiros conforme a promessa”. Assim, Hansen aponta, “Cristo, a semente única, inclui com ele uma nova comunidade de todos os crentes onde não há divisões raciais, sociais ou de gênero.” A semente prometida de Abraão se torna o “centro de uma nova unidade”.5
Como resultado, o fator de qualificação para ser membro da comunidade de Deus não é a circuncisão, mas a fé em Cristo. Essa fé por si só coloca as pessoas no relacionamento certo com ele.
Paulo resume seu argumento no versículo 18, escrevendo: “Porque, se a herança é por lei, já não o é por promessa; mas Deus concedeu a Abraão por promessa. O argumento do apóstolo não tem terreno neutro. A herança vem por meio da Lei ou da promessa, ao invés de uma combinação de ambos. Por fim, “Paulo defende o axioma teológico de que a salvação é sempre, do início ao fim, uma questão de iniciativa e graça divinas. O ponto é reforçado pela ideia de herança, […] sendo que a disposição de uma 36 herança está totalmente nas mãos do testador”.6 O meio para ser justo diante de Deus é sempre seu dom (versículo 18).
E isso é uma boa notícia não apenas para os gálatas do passado, mas também para nós, no século 21. Não obras infinitas, mas apenas a fé em Cristo – que se tornou uma maldição em nosso lugar na cruz do Calvário (versículo 13) – nos colocará no relacionamento correto com Deus. Ter fé é trilhar o caminho de Abraão, com quem Deus estabeleceu sua aliança de fé.
Mas então, Paulo pergunta no versículo 19, por que Deus deu a Lei, se guardá-la não pode ser usado como uma forma de acertar com Ele? Esse tópico levará a uma exposição de como a Lei leva à salvação em Cristo (versículos 19-25).
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1. Stott, The Message of Galatians, p. 87.
2. James D. G. Dunn, The Epistle to the Galatians (Peabody, MA: Hendrickson, 1993), p. 183.
3. Stott, The Message of Galatians, p. 88.
4. Hansen, Galatians, pp. 97, 98. 5. Ibíd., p. 98. 6. Dunn, The Epistle to the Galatians, p. 186.