Jirí Moskala
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“Disse Deus: Haja luz; e houve luz (Gn 1:3).
Embora nenhum observador humano tenha estado presente durante os cinco primeiros dias da semana da criação, dispomos do registro inspirado de “Moisés, o historiador da criação” (GC, p.v), que documentou por escrito o que lhe foi mostrado em visão.
Desde o início da semana da criação (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31; 2:2, 3), determinou-se a sequência dos dias e aplicou-se a expressão “houve tarde e manhã” (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31) a cada um dos seis primeiros dias.1 A lógica da pergunta, portanto, é clara: Se a luz foi criada no primeiro dia (Gn 1:4); e o Sol, apenas no quarto dia (Gn 1:14), qual era a luz que brilhava no primeiro dia? Essa aparente discrepância ou mesmo contradição levou os estudiosos da Bíblia a propor diferentes soluções para esse desconcertante aspecto no processo de criação. Entre todas as interpretações sugeridas, duas merecem ser levadas em conta.
A presença de Deus era a luz – A primeira interpretação afirma que a luz do primeiro dia era a presença de Deus. No Salmo 104, que é um hino poético descrevendo cada um dos sete dias da criação na mesma sequência apresentada no relato de Gênesis 1:1–2:4, a luz do primeiro dia está relacionada com a glória de Deus, que O cobre “de luz como de um manto” (Sl 104:2). O Senhor é luz (Sl 27:1; 1Jo 1:5), portanto Sua presença emite luz; a qual emana dEle. Foi assim durante o êxodo do Egito (Êx 13:21), quando a presença de Deus era a fonte de luz que guiava os israelitas, bem como durante a experiência no mar Vermelho, em que o Senhor Se manifestou simultaneamente como luz para Israel e trevas para o exército egípcio (Êx 14:19, 20).
A ideia de a luz ter existência independente do Sol é confirmada no Apocalipse (21:23; 22:5), pois ali a nova Jerusalém é apresentada como não precisando da claridade do Sol, mas sendo iluminada pela glória de Deus. Antigas fontes rabínicas também identificam a luz do primeiro dia da criação com o esplendor da presença divina.2 Mesmo, que na concepção bíblica o Sol seja uma fonte de luz, o próprio Deus é a suprema fonte de luz, da qual dependem todas as outras (Is 60:19, 20).
A luz no primeiro dia era solar – A segunda interpretação diz que Deus criou o sistema solar no primeiro dia da criação (o que explicaria o ciclo tarde-manhã a partir do primeiro dia), mas ainda não designara o Sol para cumprir sua finalidade em relação à Terra. Deus não teria criado o Sol e a Lua no quarto dia, mas apenas os designado para governar o dia e a noite, para separar a parte escura da parte clara do dia e para marcar estações, dias e anos (Gn 1:14, 18). Assim sendo, o Sol e a Lua já existiam desde o primeiro dia, mas só se tornaram visíveis na superfície da Terra após o quarto dia. Pode ser que as águas sobre o firmamento (mencionadas no segundo dia da criação, v. 7) ou nuvens pesadas (Jó 38:9) tenham envolvido o planeta, impedindo o Sol de ser visto da Terra. Segundo essa concepção, a camada de água ou a manta de nuvens teria desaparecido no quarto dia.
Gênesis 1:14 pode ser traduzido como uma oração subordinada adverbial final: “Haja luzeiros […] para fazerem separação entre o dia e a noite.” Essa tradução supõe que os luzeiros já se encontravam no firmamento. Vale ressaltar que a declaração em Gênesis 1:16 de que Deus criou dois luzeiros pode ser traduzida como “havia feito”. Isso sugere que eles foram criados antes do quarto dia da criação. Segundo a gramática hebraica, essa tradução é legitimamente possível.3
É possível combinar as duas soluções propostas, já que elas podem ser complementares. A presença de Deus pode ter sido a fonte principal de luz nos três primeiros dias, mas essa luz também pode ter incluído a luz do Sol (no caso de o sistema solar existir desde o primeiro dia). Do quarto dia em diante, porém, o foco de interesse foi direcionado para a luz vinda dos corpos astronômicos, do jeito como os conhecemos hoje.
“E fez também as estrelas” (Gn 1:16) – Dizer que as estrelas também foram criadas com o Sol e a Lua no quarto dia exige que o Universo (pelo menos o visível) também tenha sido criado nessa ocasião. À vista de nossa compreensão do grande conflito, porém, isso é bem pouco provável.
As palavras “fez” e “também” na frase “E fez também as estrelas” foram interpoladas pelos tradutores; não constam no texto hebraico. O v.16 pode ser traduzido assim: “Fez Deus os dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia, e o menor para governar a noite com as estrelas.”4 Nesse sentido, o céu estrelado pode ter sido criado muito antes da criação de semana.
De acordo com Jó 38:7, “as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus” quando a Terra foi criada. Se “as estrelas da alva” representam aqui os anjos e são vistas como uma personificação do céu estrelado, então esse texto confirma a existência de anjos e estrelas antes da semana da criação.
Criação e adoração – A criação da luz tornou possível a contagem do tempo, dando início assim à sucessão dos dias. Como resultado, no primeiro dia, Deus ordenou o tempo para este planeta. Depois, no quarto dia, Deus designou o Sol e a Lua para marcarem as estações e outras unidades de tempo, inclusive o tempo para adoração.
Em contraste com os deuses solares e lunares dos panteões pagãos, o relato bíblico da criação declara que Deus criou apenas luzeiros anônimos, o luzeiro maior e o luzeiro menor. Agindo assim, o Senhor ergueu um muro contra a infiltração da adoração ao Sol e à Lua entre os seguidores de Deus. Esse elemento antimitológico enfatiza que Deus está no controle, é o criador da luz e, em última análise, a sua fonte. A luz e o tempo dependem dEle. Somente Ele merece ser adorado, pois é o Deus criador.
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1 O autor do relato da criação em Gênesis escreveu a partir do ponto de vista terreno (e não cósmico). Shea afirma corretamente: “Os atos criacionais foram revelados e registrados como se houvessem passado diante de um observador posicionado na Terra, e não fora do seu sistema. Esse ponto de vista faz com que alguns elementos da narrativa sejam mais compreensíveis” (W. H. Shea, “Criação”, em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, Raoul Dederen (Tatuí, SP: CPB, 2011), p. 469.
2 Talmud, Genesis Rabba, v. 3, p. 4.
3 Ver Gesenius’ Hebrew Grammar, editado por Emil Kautsch e A. E. Cowley, Segunda Edição Inglesa (Oxford: Clarendon Press, 1910), p. 348.
4 Colin L. House, “Some Notes on Translating in Genesis 1:16”, Andrews University Seminary Studies 25 (1987), p. 247.