Interpretando as Escrituras: Gênesis 1 e 2 apresentam dois relatos contraditórios? – Capítulo 17

Randall W. Younker

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Esta é a gênese dos céus e da Terra quando foram criados, quando o Senhor Deus os criou. Não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois ainda nenhuma erva do campo havia brotado; porque o Senhor Deus não fizera chover sobre a terra, e também não havia homem para lavrar o solo. Mas uma neblina subia da terra e regava toda a superfície do solo, (Gn 2:4-6).

Um dos desafios à integridade do relato bíblico da criação é a alegação de que os dois primeiros capítulos do Gênesis apresentam duas narrativas contraditórias, visto que os capítulos empregam nomes diferentes para Deus (Elohim e Yahweh). Há também outras discrepâncias; por exemplo, no capítulo 1, mostram-se as plantas sendo criadas no terceiro dia; enquanto, no capítulo 2, elas são criadas depois dos seres humanos. Alega-se ainda que Moisés não escreveu nenhum capítulo do livro.

Antigos costumes de escrita – A existência de duas versões de uma história dentro de uma mesma peça literária não era incomum nos tempos antigos. Havia no antigo Oriente Médio a convenção literária de contar a história da origem da humanidade de forma duplicada. Como Gênesis 1 e 2, a história sumeriana Enki e Ninmah descreve a criação dos seres humanos em dois relatos paralelos. Uma estrutura similar também pode ser vista na Epopeia de Atrahasis. A história da criação de Gênesis 1 termina em 2:4, e não em 1:31. As divisões em capítulo e versículos foram inseridas na Bíblia bem mais tarde, muitas vezes segmentando o texto de forma arbitrária. Muitas versões bíblicas modernas indicam essa quebra interpolando um espaço em branco ou um cabeçalho entre 2:4 a 2:4b, bem no meio do versículos!

Vegetação em Gênesis 1 e 2 – A intenção inicial do capítulo 2 é apresentar quatro coisas que ainda não existiam quando Deus terminou de fazer a Terra e os céus: o arbusto do campo, a erva do campo, o homem para lavrar o solo e a chuva. São essas coisas, em especial as plantas e o homem, de alguma forma diferentes das mencionadas no capítulo 1? Em caso afirmativo, como e por que essas coisas vieram a existir?

A planta do campo – Gênesis 1:12 diz: “A terra, pois, produziu relva [deshe’], ervas que davam semente [eseb mazrya zera] segundo a sua espécie e árvores que davam fruto [etz oseh peri], cuja semente estava nele, conforme a sua espécie.” Gênesis 2:5, por outro lado, registra que, antes da criação do homem, não havia nenhuma planta do campo (siach hassadeh) e ainda não “havia brotado” nenhuma erva do campo (eseb hassadeh).

Mesmo defendendo a autoria múltipla e tardia do Gênesis, Thomas L. Thompson não acha adequado apelar para o uso tradicional da história da criação “duplicada” como apoio para a teoria documental. Segundo ele, “esse esforço desgastado de relacionar tradições paralelas e unidades de tradições, embora um passo inicial fundamental para a história das tradições, precisa ser radicalmente questionado. Não encontramos na Bíblia quantidade nem variedade suficiente de relatos com os quais se possa razoavelmente analisar a inter-relação entre eles. Além disso, a existência de duplicados não é um critério definitivo pelo qual possamos provar que existam diferenças nas tradições ou em fontes complexas de tradições. Podem existir (e de fato existem) histórias duplicadas ou triplicadas dentro das mesmas tradições” (The Origin Tradition of Ancient Israel [Sheffield, England: Sheffield Academic Press, 1987], p. 59).


A maioria dos estudiosos supõe que as palavras e expressões empregadas em Gênesis 1:12 e 2:5 para as plantas ou vegetação tenham o mesmo significado. Uma leitura atenta do texto, porém, revela que os termos botânicos empregados nesses textos não são idênticos. A palavra siach ocorre apenas quatro vezes na Bíblia hebraica (Gn 2:5; 21:15; Jó 30:4, 7), mas a expressão siach hassadeh é atípica e só ocorre em Gênesis 2:5. O contexto tanto de Gênesis 21:15 quanto de Jó 30:4, 7 deixa claro que siach é uma xerófita, isto é, uma planta adaptada a ambientes secos ou desérticos. Como tal, é mais provável que se trate de uma planta espinhosa. Essa forma de entender siach recebe respaldo de Gênesis 3:18 em que a expressão “erva do campo” [eseb hassadeh] vem emparelhada com “cardos e abrolhos”. Ao que parece, o escritor pretende estabelecer um paralelo entre a expressão “cardos e abrolhos” com a expressão anterior “planta do campo” [siach hassadeh]. Essas plantas espinhosas não eram propositadamente cultivada por um agricultor do antigo Oriente Médio, nem é provável que tenham sido incluídas entre as espécies criadas por Deus quando Ele plantou o jardim no Éden, na direção do oriente, e o encheu de “toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento” (Gn 2:8, 9). Portanto, uma das plantas que ainda não existia no contexto da narrativa de Gênesis 2:4b eram as xerófitas espinhosas, uma verdadeira praga para o agricultor! Qual é, pois, a intenção do autor aqui? Para entender melhor, examinemos primeiramente a próxima planta não existente no início: a “erva do campo”.

A erva do campo – Embora o outro termo botânico de Gênesis 2, eseb (planta), seja bastante comum no texto hebraico, ele integra a locução eseb hassadeh (“erva do campo”) em Gênesis somente em 2:5 e 3:18. Em Gênesis 3:18, a “erva do campo” é especificamente designada como o alimento que Adão teria que comer por causa de seu pecado, alimento que se produz diretamente da “fadiga” e “do suor do rosto” do homem. Em outras palavras, “as ervas do campo” são aquelas plantas produzidas especificamente pelo trabalho com o qual o homem foi castigado por haver caído em pecado. Como ressalta U. Cassuto: “Essas espécies não existiam, ou não eram encontradas na forma como as conhecemos depois da transgressão de Adão, e foi em consequência da queda que elas entraram no mundo e receberam sua forma atual.”1

O fato de Gênesis 3:19 declarar explicitamente que essas plantas eram empregadas na panificação mostra que a expressão “ervas do campo” se refere especificamente aos bem conhecidos cereais usados no Oriente Médio para fazer pão, a saber, trigo, cevada e outros grãos. No Oriente Médio, a produção de cereais exige o “cultivo do solo”, outra característica que Gênesis associa especificamente a essas plantas. Os dois termos botânicos “planta do campo” e “erva do campo” não abrangem todo o reino vegetal, mas apenas a parte do reino vegetal que interessa em especial ao agricultor: plantas cultiváveis anuais e ervas daninhas.

Não havia homem para lavrar o solo – Mais uma vez estudiosos supõem que Gênesis 2:5b contradiz o capítulo 1, porque, enquanto o primeiro capítulo descreve a criação do homem no sexto dia, Gênesis 2:5b parece sugerir que Deus ainda não havia feito homem depois de terem sido “acabados os céus e a Terra” (Gn 2:1). Trata-se, no entanto, mais uma vez de uma leitura bastante simplista do texto, que ignora na constituição da frase o importante modificador “para lavrar o solo”.

Deve-se notar que o homem criado em Gênesis 1:26-30 não foi feito para lavrar o solo. Pelo contrário, ele foi criado para dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (v. 26). Além disso, ele recebeu como alimento “todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente”. Nada se diz sobre “lavrar o solo”.

O homem que “lavra o solo” só entra em cena depois da queda de Adão. Somente então, devido a seu pecado, Adão recebe uma sentença: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela [da terra] o sustento durante os dias de tua vida” (Gn 3:17b). A exemplo da “planta do campo”, de Gênesis 2:5, o “homem para lavrar o solo” só passa a existir após a queda, como resultado direto do pecado. Gênesis 2:5b, portanto, não está dizendo que não existia ser humano quando Deus fez a Terra e os céus. Pelo contrário, o texto está dizendo que ainda não existia ser humano pecador (ou seja, alguém que devia lavrar a terra para obter alimento). Esse homem só passa a existir depois da queda, um fato que só é comentado no capítulo 3. Gênesis 2 está, portanto, armando o cenário para o que vem mais tarde em Gênesis 3.

Chuva – A última coisa que, segundo Gênesis 2:5b, não existia quando Deus terminou de criar a terra e os céus era a chuva. Seguindo o mesmo padrão claramente definido para as três categorias anteriores, é lógico supor que a chuva só faz a sua aparição após a entrada do pecado. E é exatamente isso o que ocorre. No entanto, ao contrário dos três primeiros itens, que aparecem logo após a queda do homem, a chuva só vai ser mencionada em Gênesis 7:4, 12, no início do dilúvio, embora o contexto revele com clareza que a chuva também surge como uma das consequências da entrada do pecado no mundo.

Embora os arbustos espinhosos, as plantas cultivadas e o ato de cultivar tenham sobrevindo aos seres humanos como juízos imediatos por causa do pecado, passaram a servir também como meio de subsistência. O último castigo, a chuva, só sobrevém depois que a condição dos antediluvianos se agrava tanto que Deus Se arrepende de lhes dar uma segunda chance e decide exterminá-los. A chuva parece pela primeira vez neste mundo, não como uma fonte de água para a agricultura, mas como um agente do juízo divino.

Resumo – Uma leitura atenta do texto sugere que o relato da criação feito no capítulo 2 não contradiz o capítulo 1. Pelo contrário, o objetivo de Gênesis 2:4-9 é explicar a origem de quatro coisas que não faziam parte da criação original de Deus, descrita no primeiro capítulo (1) espinhos, (2) agricultura, (3) cultivo/irrigação e (4) chuva. O capítulo 2 informa ao leitor que cada uma dessas coisas surgiu como resultado direto da entrada do pecado. Espinhos, plantas que requerem cultivo e uma raça humana que precisa lavrar o solo para obter alimento são introduzidos em Gênesis 3:17, 18 como maldições ou juízos aplicados imediatamente após a queda. Embora seja mencionada apenas no dilúvio, a chuva também vem como juízo contra o pecado da humanidade. Neste sentido, em vez de ser uma contradição ao capítulo 1, os versículos iniciais do capítulo 2 servem, na verdade, como uma ponte entre a criação perfeita do primeiro capítulo e a entrada do pecado no mundo a partir do 3º capítulo.

Acho possível que um indivíduo, contemplando a Terra onde a mão do homem tem feito tanta maldade, possa tornar-se ateu; mas me parece inconcebível que esse mesmo indivíduo, ao contemplar o Céu, possa dizer que não há Deus. (Abraão Lincoln)


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1 U. Cassuto, The Documentary Hypothesis (Jerusalém: Magnes, 1961), p. 102.

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