O espírito de nossa era é hostil às pessoas que expressam suas opiniões com clareza e se apegam firmemente a ela. É provável que uma pessoa de convicção, *por mais inteligente, sincera e humilde que possa ser, seja vista como fanática*. Em nossos dias, considera-se realmente brilhante a mente que é ampla e aberta — ampla o suficiente para absorver toda ideia nova que lhe é apresentada e aberta o suficiente para continuar a fazer isso sempre.
Em resposta a isso, é preciso dizer que a fé cristã é, em essência, dogmática, pois declara ser uma fé revelada [por Deus]. *Se o cristianismo fosse apenas uma coletânea de ideias humanas, então a convicção dogmática não teria propósito*. Contudo, se (como alegam os cristãos) Deus falou — tanto há muito tempo por meio dos profetas como nestes últimos dias por meio de seu Filho -, qual é o problema de crer no que ele disse e de insistir para que outras pessoas também creiam? Afinal, se há uma Palavra de Deus que pode ser lida e recebida hoje, seria tolice e um erro ignorá-la.
Naturalmente, o fato de Deus ter falado e de sua Palavra estar registrada em um livro não significa que os cristãos sabem tudo. Podemos, às vezes, dar a impressão de que pensamos isso — neste caso, precisamos ser perdoados por nossa arrogância. Como deixa claro o apóstolo João em sua primeira carta, ‘ainda não se manifestou o que havemos de ser’. […]
Devemos entender o que foi claramente revelado e admitir nossa ignorância com relação ao que não foi revelado. […]
[…] em se tratando daquilo que está claramente revelado na Bíblia, os cristãos não devem ser duvidosos nem ficar desculpando-se […]. O Novo Testamento está repleto de afirmações claras que começam com ‘sabemos’, ‘estamos certos’, ‘estamos convictos’. Basta ler a primeira carta de João, na qual verbos com o sentido de ‘saber’ aparecem cerca de quarenta vezes. Eles expressam uma alegre convicção que, infelizmente, está faltando em muitas áreas da igreja hoje e precisa ser resgatada. ‘É um grande erro pensar que a humildade exclui a convicção’ – escreveu o professor James Stewart -‘G. K. Chesterton, uma vez, escreveu algumas palavras sábias sobre o que chamou de ‘deslocamento da humildade’ […] ‘O mal que sofremos hoje é de uma humildade no lugar errado’.’
O que ele quer dizer é que devemos admitir nossas limitações para compreender a verdade sem duvidar da realidade da própria verdade. O problema é que isso tem sido invertido. Como diz Chesterton, *’estamos caminhando para produzir uma raça de pessoas com uma mente muito modesta para crer na mesa da multiplicação’. ‘Devemos ser sempre humildes e abdicados’ – continua o professor Stewart – ‘mas nunca desconfiar ou desculpar-se pelo evangelho.’*
Em outras palavras, uma mente ampla e aberta, tão valorizada em nossos dias, não é necessariamente algo bom. Sem dúvida, devemos manter a mente aberta quanto a questões sobre as quais a Bíblia parece não ser clara e receptiva para que nossa compreensão da revelação de Deus continue a se aprofundar. Devemos também fazer a distinção entre a essência de uma doutrina e nossas formas imperfeitas de compreendê-la e explicá-la. Contudo, quando o ensino da Bíblia é claro, então continuar a manter a mente aberta não é sinal de maturidade, mas de imaturidade. Paulo chama de ‘crianças’ aqueles que não conseguem decidir em que acreditar, que são ‘jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina’. E ter pessoas que estão ‘sempre aprendendo, e jamais conseguem chegar ao conhecimento da verdade’ [2Tm 3:6-9] é uma característica dos ‘tempos terríveis’ em que estamos vivendo.
[…] É muito fácil tolerar as opiniões dos outros se nós mesmos não tivermos opiniões fortes*. Mas não devemos concordar com isso. […] O cristão deve sempre ser tolerante em espírito — amoroso, compreensivo, capaz de perdoar e de ser paciente com os outros, tendo consideração por eles e dando-lhes o benefício da dúvida, pois o amor verdadeiro ‘tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta’. Porém, como podemos ter uma mente tolerante com relação ao que Deus revelou claramente que é errado?
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Talvez a melhor maneira de respaldar a afirmação de que a controvérsia é, às vezes, uma necessidade dolorosa seja lembrar que nosso próprio Senhor Jesus Cristo foi um controversista. Ele não tinha a ‘mente aberta’ no sentido de que estava preparado para aceitar qualquer ponto de vista. Pelo contrário, […] ele sempre se envolvia em discussões com os líderes religiosos de sua época — escribas, fariseus, herodianos e saduceus. Ele dizia que ele mesmo era a verdade, que havia vindo para testificar a verdade e que a verdade libertaria seus seguidores. Sua lealdade à verdade significava que ele não tinha medo de discordar publicamente de declarações oficiais (se soubesse que estavam erradas), de expor o erro e de advertir seus discípulos sobre os falsos mestres. Ele também foi extremamente direto em seu modo de falar, chamando-os de ‘guias cegos’, ‘lobos em pele de ovelha’, ‘sepulcros caiados’ e até ‘raça de víboras’.
Não foi só Jesus. As cartas do Novo Testamento deixam claro que os apóstolos também eram controversistas. Judas, por exemplo, apelou a seus leitores que batalhassem ‘pela fé de uma vez por todas confiada aos santos’. Como seu Senhor e Mestre, eles precisaram advertir as igrejas sobre os falsos mestres e exortá-las a permanecerem firmes na verdade.
Às vezes, há quem diga que essa atitude é incompatível com o amor. Entretanto, consideremos o exemplo de João, conhecido como o apóstolo do amor. Temos dele a sublime declaração de que Deus é amor, e suas cartas estão repletas de apelos para que os cristãos amem uns aos outros. No entanto, ele declara abertamente que quem nega que Jesus é o Cristo é um mentiroso, um enganador e um anticristo. Da mesma forma, Paulo, que em 1 Coríntios 13 nos dá o grande hino ao amor e declara que o amor é a marca suprema do Espírito, pronuncia uma maldição solene sobre qualquer um que distorcer o evangelho da graça de Deus.
Em nossa geração, parece que nos distanciamos muito deste zelo veemente pela verdade apresentada por Cristo e seus apóstolos. Contudo, se amássemos mais a glória de Deus e nos preocupássemos mais com o bem eterno de outras pessoas, estaríamos mais preparados para participar de discussões quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordem é clara. Devemos ‘[seguir] a verdade em amor’. Ou seja, não esquecer a verdade em nosso amor, nem o amor em nossa verdade, mas manter os dois em equilíbrio.
[…] É certo – dizem – que, diante dessas ameaças à religião cristã, devemos estreitar nossas fileiras. Não podemos mais nos dar ao luxo da divisão. Estamos lutando por nossa sobrevivência.
Este apelo à unidade é comovente, e não devemos ignorá-lo. Ele contém muitos aspectos com os quais concordamos plenamente. Algumas de nossas divisões são não apenas desnecessárias, mas também uma ofensa a Deus e um empecilho para a propagação do evangelho. Acredito que a unidade visível da igreja é biblicamente correta e desejável na prática, e que devemos buscá-la efetivamente. Ao mesmo tempo, precisamos nos fazer uma pergunta simples, mas inquisitiva: Se quisermos enfrentar aqueles que se opõem a Cristo com uma frente cristã unida, que tipo de cristianismo vamos promover? A única arma que pode derrotar os inimigos do evangelho é o próprio evangelho. Seria uma tragédia se tivéssemos de abandonar a única arma eficaz de nosso arsenal. Um cristianismo unido que não seja o verdadeiro não ganhará a vitória sobre as forças anticristãs.” — John R. W. Stott. As controvérsias de Jesus (Viçosa-MG: Ultimato, 2015), pp. 15-21.