Marcos: Comentário de Dewey M. Mulholland

Condições de Entrada no Reino de Deus

Capítulos 9:30 a 10:31

Fonte: Série Cultura Bíblica

Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, sua vida e morte, suas palavras e feitos mudaram para sempre o curso da vida de homens e mulheres no mundo. Ele estabeleceu as bases da esperança no futuro. Essas boas novas nos são apresentadas no “Evangelho Segundo Marcos”, provavelmente o mais antigo relato que temos sobre Jesus.

À primeira vista, o Evangelho de Marcos parece ser um simples recontar dos fatos ocorridos na vida e ministério de Jesus. Entretanto, pela habilidosa descrição de tais episódios, o autor nos apresenta um Jesus realmente humano que é ao mesmo tempo Deus entre os homens. Pela seleção criteriosa e colocação estratégica desse material, ele integra teologia e a realidade da vida. O retrato vivido de seus personagens leva os leitores a experimentar tais eventos em primeira mão, pois os conflitos experimentados pelos contemporâneos de Jesus são compartilhados pelas pessoas de todos os lugares. Ao descrever como o governo de Deus se tornou realidade com a vinda de Jesus, ele desafia a humanidade a um discipulado radical.

Este Evangelho nos oferece uma excelente oportunidade de contemplar a pessoa de Jesus Cristo. Por meio dele sabemos como Deus é, o que ele espera dos homens e mulheres e o que ele tem feito para tornar realidade essa expectativa. Além disso, Jesus nos convida a segui-lo e a experimentar aqui e agora os privilégios e as responsabilidades do reino de Deus.

Teria sido muito proveitoso se o Evangelho identificasse claramente seu autor, seus propósitos e outros detalhes. Na ausência de tais dados, os estudiosos pesquisam as informações implícitas no texto e nas evidências externas, com o objetivo de entender os antecedentes e as origens do Evangelho. Cada um aborda essa questão com suas próprias pressuposições. E sob essa perspectiva que apresento o que acredito ser uma hipótese possível para a origem do Evangelho de Marcos.

A Ocasião, o Autor e a Data do Evangelho

À medida que aqueles que conviveram com Jesus aproximam-se do fim de suas vidas, torna-se imperativo que a história da vida de Jesus e os seus ensinos sejam registrados para as futuras gerações. Além de sua importância como documento histórico, essa narrativa é capaz de apresentar homens e mulheres a Jesus, conduzindo-os ao reconhecimento de que ele é o Cristo, o Filho de Deus. Da mesma forma, ao retratar as dificuldades dos discípulos em compreender e seguir a Jesus no caminho para a cruz, Marcos pode, também, se tornar um eficiente guia à vida e à obediência a Deus.

O autor deste Evangelho aborda essas necessidades ao escrever a pessoas de diferentes níveis de entendimento. Como um evangelista, ele promove um compromisso radical com Jesus Cristo.

Ele também escreve como um pastor atento às lutas das comunidades cristãs. Na metade do primeiro século A.D., Roma era uma próspera cidade com cerca de 1 milhão de pessoas. Abrigava homens e mulheres vindos das fronteiras mais distantes do Império, que trouxeram consigo seus próprios costumes, línguas e religiões. Os cristãos também vieram, trazendo sua nova fé em Jesus Cristo, compartilhando o evangelho com todos, independente de origem étnica, classe social ou econômica. Porém, a diversidade étnica e as experiências religiosas anteriores desses novos cristãos ameaçam o cristianismo autêntico. Os novos convertidos incorporam elementos de sua herança religiosa à doutrina cristã. Seu comportamento quase sempre ofendia os códigos morais dos outros crentes. O relacionamento entre os crentes judeus e gentios tornou-se especialmente difícil à medida em que os líderes das sinagogas denunciavam aqueles judeus que rejeitavam as antigas tradições. A incipiente perseguição das autoridades romanas ganhava força com a alegação de que a lealdade a Jesus Cristo e seu reino colidiam com a lealdade a César.

Sofrendo com as tensões internas e os ataques externos, a comunidade cristã em Roma necessitava de ajuda. É o pensamento deste escritor que Marcos escreveu este Evangelho tendo em mente aqueles cristãos.

Marcos, também conhecido por João Marcos, era filho de Maria, cuja casa tornara-se local de reunião dos primeiros cristãos em Jerusalém. (At 1.13). Marcos provavelmente fora convertido pelo ministério de Pedro e discipulado por Barnabé (At 12.25, cf. At. 11.25).

Na primeira viagem missionária, Barnabé e Saulo levaram consigo a João Marcos como hyperetes (At 13.5), um “auxiliar” ou “ministro”. De acordo com o testemunho unânime da Igreja primitiva, Marcos recebeu o Evangelho de Pedro. Esta testemunha ocular, portanto, treinou Marcos para ser um hyperetes — um auxiliar. Nessa capacidade, Marcos “ministrou” a Saulo de Tarso (Paulo) na viagem à Ásia Menor (47 – 49 d.C), suprindo-lhe conhecimentos sobre os feitos e as palavras de Jesus.

O Livro de Atos não diz porquê João Marcos “…apartando-se deles, voltou para Jerusalém” (13.13). Talvez a insistência de Paulo na aceitação dos gentios sem exigir a Circuncisão tenha provocado certa inquietação em Marcos, o qual teria partido para discutir o assunto com o seu mentor, Pedro. Depois da decisão sobre a questão no concilio de Jerusalém (At 15), Barnabé queria que Marcos voltasse a acompanhar a equipe missionária (15.36-40). Houve, no entanto, um grande desentendimento entre Paulo e Barnabé, e eles seguiram por caminhos diferentes. Deste ponto em diante o livro de Atos omite qualquer referência a Marcos (também Pedro). Marcos reaparece nas Epístolas (60-65 d.C), reconciliado com Paulo, em Roma. Paulo o recomenda à igreja em Colossos (Cl 4.10-11) como um amigo e Consolador. Mais tarde Paulo pede a Timóteo que traga Marcos para Roma “pois me é muito útil para o ministério” (2 Tm 4.11).

As Teologias de Marcos e de Paulo evidenciam um relacionamento estreito. Por exemplo, ambos enfatizam a cruz de Cristo, e sua humilhação, como o caminho da glorificação. Ambos pregam a harmonia para a comunidade cristã formada por gentios e judeus, sem abrandarem as denúncias ao legalismo judeu. Outros temas comuns como o lugar da Lei mosaica na comunidade cristã, a hostilidade dos líderes civis e religiosos contra Cristo, e o cumprimento dos propósitos de Deus como revelados no Antigo Testamento, se encontram tanto nos escritos de Marcos como nos de Paulo. Em contraste com a abordagem proposicional de Paulo, Marcos expressa sua teologia nas narrativas da vida de Jesus. Desse modo, ele convida seus leitores a identificarem suas experiências com os acontecimentos do evangelho, e a crescer no conhecimento de Deus e de como ele opera. Os relatos do sofrimento de Jesus, por exemplo, proveem a base para a autonegação como parte do discipulado (cf. 8.34).

Pedro, também, passou seus últimos anos em Roma e foi martirizado da mesma forma que Paulo. Marcos tinha estado com ele no princípio em Jerusalém; agora, no final da vida do apóstolo, eles estavam juntos diariamente. As vividas narrativas de Marcos e o uso distintivo dos pronomes refletem a influência do testemunho ocular de Pedro. Por meio das narrativas de Marcos, Pedro relata até mesmo suas próprias falhas em compreender o significado do ministério e da morte de Jesus. O entendimento completo só veio para ele depois da ressurreição, quando Jesus abriu as mentes de seus seguidores para que pudessem entender as Escrituras (Lc 24.27; At 1.3). Sob a direção do Espírito Santo (Jo 16.21; 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.20), Marcos derivou o material do seu evangelho das experiências pessoais de Pedro com Jesus.

As datas propostas para o surgimento deste Evangelho em sua forma definitiva vão do ano 39até um pouco antes da destruição de Jerusalém em 70 d.C Parece-nos razoável que João Marcos tenha começado a escrever seu Evangelho em Roma com a colaboração de Pedro, e possivelmente Paulo, e que o tenha concluído após martírio deles (65 d.C), antes, porém, do início da guerra dos judeus contra Roma (67 -70 d.C).

Ao compor seu Evangelho, Marcos tinha em mente as necessidades dos gentios convertidos dentre seus leitores. Ele traduziu, por exemplo, várias expressões do aramaico (3.17; 5.41; 7.11, 34; 15.22) e deu explicações sobre alguns costumes judaicos (7.3; 15.22). Ao mesmo tempo ele deixou muitas alusões ao Antigo Testamento sem explicação, sinalizando dessa forma as raízes judaicas da fé cristã.

Marcos também procurou fortalecer a fé de seus leitores judeus. Seu uso constante do Antigo Testamento lembrava-lhes de que eram o povo especial de Deus, escolhidos para compartilhar sua rica herança com as nações. Em Jesus, eles viam a compaixão de Deus e seu misericordioso perdão.

Marcos enfatizou que Jesus é o Servo Sofredor que cumpriu o papel do verdadeiro Messias, de acordo com os profetas. Ele lhes deu esperança em meio aos sofrimentos. Ele lhes ensinou os elementos da verdadeira adoração, livre do legalismo, nacionalismo e ritualismo centralizados em Jerusalém. Marcos sabia que a igreja primitiva devia ser edificada sobre a verdade da nova aliança.

O relacionamento próximo de Marcos com os seus primeiros leitores explica várias questões intrigantes para o leitor moderno. Ele não sentia necessidade de declarar explicitamente sua autoria, pois tinha certeza de que os leitores originais sabiam que ele estava escrevendo a história de Jesus. Um incidente, aparentemente biográfico, como aquele do jovem envolto no lençol que fugira nu, seria o suficiente para identificá-lo como autor (15.51s). Seus leitores sabiam que o Espírito Santo fora dado conforme profetizado por João Batista (1.8). Não havia necessidade de escrever sobre as aparições pós-ressurreição de Jesus, pois eles sabiam que Jesus tinha ressuscitado do túmulo (como declarado em 16.6). Marcos apresenta Jesus ensinando de maneira a atender às necessidades existenciais daqueles primeiros leitores em seu contexto social.

O texto de Marcos flui de sua preocupação pastoral com seus leitores. Ele os encoraja a se tornarem discípulos, aplicando a si mesmos todo o ensinamento que Jesus dera aos doze. Está convencido de que o verdadeiro conhecimento da natureza, caráter e ministério de Jesus, é necessário para uma vida individual e comunitária saudável. Ele traz à mente os dilemas e as oportunidades que estavam diante de seus leitores. Quer que eles compreendam o verdadeiro significado do evangelho e que sigam a Jesus custe o que custar. Deseja que os crentes, judeus e gentios, vivenciem a unidade como membros da família de Deus (3.35), e como participantes na “casa de oração para todos os povos” (11.17). Marcos encoraja os crentes judeus a abraçar os gentios como coerdeiros da graça de Deus.

Marcos está profundamente interessado em espalhar o evangelho a todas as nações, pois seu Evangelho tem um apelo universal. Mesmo assim, não o vemos como uma mensagem evangelística dirigida aos incrédulos em particular. Ao apresentar a mensagem de Jesus Cristo em profundidade, ele o faz a fim de preparar os crentes para viverem e a proclamarem as Boas Novas. Isso condiz com sua ênfase no discipulado. Seu método consiste em desdobrar a mensagem clara e profundamente, e, então, exortar a todos os discípulos a cumprir a missão iniciada pelo próprio Jesus, levar as Boas Novas a judeus e gentios da mesma forma.

O Estilo do Evangelho e sua Interpretação

Embora o Evangelho de Marcos tenha sido bem recebido quando surgiu, os outros Evangelhos logo ganharam a preferência na igreja primitiva. Tendo recebido pouca atenção durante séculos,

Marcos foi reavaliado como o mais antigo relato do evangelho1, enquanto outros relacionaram a trama em Marcos com a de um dicionário.). O contexto indicará quando usamos “Marcos” referindo-nos ao “Evangelho segundo Marcos” ou, particularmente, ao seu autor. No século dezenove alguns estudiosos buscaram o “Jesus histórico” convencidos de que a igreja primitiva havia criado o “divino Cristo da fé”. Nos anos de 1920, os primeiros críticos da forma, liderados por R. Bultmann e M. Dibelius, rotularam Mateus e Marcos como “primariamente editores e colecionadores de tradições”, e seus evangelhos como inquestionáveis “escritos de natureza não-literária”.1 Na opinião de ambos, o Evangelho consiste em coleções de histórias as quais têm sido contadas e recontadas por mestres e pregadores. Essas histórias são úteis para informar sobre a fé na comunidade cristã primitiva, mas não são consideradas base para a vida de Jesus. Como resultado, os críticos da forma centralizaram-se na formação das unidades individuais dos Evangelhos.

Por volta da metade do século XX, as investigações avançaram na direção da reintegração do texto. Críticos de redação, como W.Marxsen, enfatizaram a necessidade de se ver os escritores dos evangelhos como “artistas criativos guiados por conceitos teológicos e problemas comunitários”.2

Entretanto, ao investigarem o modo pelo qual as unidades individuais, histórias e ditos dos evangelhos foram juntados, não viram como as essas unidades se relacionam umas com as outras, formando uma narrativa contínua, na qual cada episódio é compreendido em relação ao todo.

Parece, porém, que os esforços da crítica da forma e da crítica da redação redundaram em resultados pouco satisfatórios no que tange a descoberta dos processos pelos quais o texto do Evangelho de Marcos chegou a ser produzido. Após muitos anos estudando as questões da crítica da tradição e da crítica da redação no Evangelho de Marcos, Normam Perry conclui que essas questões têm valor insignificante na interpretação: “o que importa é a função do texto em relação ao Evangelho como um todo”.3

Enquanto algumas pesquisas sobre forma e redação contribuíram para o estudo do Novo Testamento, a tentativa de se descobrir e analisar porções pré-literárias têm resultado na diluição do todo. Quando o texto é visto como algo parecido com a forma literária de uma “coleção de selos” o resultado é a desintegração dos Evangelhos. Quando, porém, Marcos é lido segundo os seus próprios méritos, os leitores reconhecem que ele não é nenhum escritor ingênuo ou simplório, mas habilidoso. O grego, evidentemente, não era sua língua materna, mas sua simplicidade linguística “não deve levar o intérprete a deduzir simplicidade nos padrões de pensamentos”.4

A partir do início dos anos de 1970 houve uma intensificação no trabalho de crítica literária, o que fez com que muitos estudiosos passassem a considerar o Evangelho de Marcos como produto de um autor criativo. Eles veem que o importante é uma abordagem sintética, que evite a pulverização da narrativa. Sem descartar percepções adquiridas de outras metodologias, agora analisam o todo como uma narrativa unificada. As partes são examinadas em relação ao todo e o todo em relação às partes, num processo contínuo.

Cada Evangelho tem seus traços distintivos, que refletem a riqueza de suas fontes sintonizadas com as necessidades de seus leitores originais. Por essa razão, os Evangelistas reportavam os mesmos ditos de Jesus de forma diferente (compare, por exemplo, Mc 10.18 com Mt 19.17). A partir do material que tinha em mãos, cada autor selecionou cuidadosamente os episódios que mostravam quem Jesus era e os organizou de maneira a desafiar seus leitores a um discipulado radical. Marcos não descreve os fatos como um historiador moderno, nem relata o que Jesus ensinou, palavra por palavra, como um oficial de justiça na corte. Contudo, ele apresenta Jesus e seus ensinamentos de maneira precisa, de modo a traduzir o que havia de mais relevante para os seus leitores. Ele omitiu algumas coisas que desejaríamos saber. Mas isso não significa que ele não as conhecesse — elas talvez fossem irrelevantes para os seus propósitos, ou de conhecimento comum.

Quando um texto é entendido como uma composição na qual o teólogo deliberadamente seleciona seu material e cuidadosa e criativamente o compõe, segundo os seus propósitos, muitas das supostas contradições se tornam ilusórias.

Em seu plano global, o Evangelho de Marcos progride cronologicamente, do batismo de Jesus por João até a sua Crucificação e ressurreição. As linhas gerais das jornadas de Jesus podem ser traçadas a partir de suas caminhadas pela Galiléia, e de sua viagem à Jerusalém. Uma vez que a atividade salvadora de Deus se deu no contexto de eventos históricos, Marcos apresenta o seu Evangelho na forma de narrativa histórica. A riqueza de detalhes gráficos é evidência de sua confiabilidade histórica.

Entretanto, nem a cronologia nem a geografia governam todos os detalhes de sua narrativa. O autor sentiu-se livre para lançar mão de eventos ocorridos em outras épocas ou lugares quando esses esclareciam o tema proposto. Como exemplo, uma vez iniciada a oposição dos líderes religiosos (2.1-12) Marcos desenvolve o tema em cinco confrontações, as quais culminam com o plano para matar a Jesus (3.6). Ele compõe cuidadosamente essa unidade literária a fim de alcançar a sua intenção teológica. Apresentar a pessoa de Jesus e porquê ele morreu é mais importante do que a sequência dos acontecimentos. Isso não significa que Marcos tivesse inventado incidentes ou ditos de Jesus. Não há qualquer indicação de que ele tenha feito isso. Sua criatividade aparece em sua habilidade de tornar o material significativo para os seus leitores, de acordo com o seu propósito.

O propósito supremo do autor está alinhado como propósito de Deus em revelar-se: ele deseja que cada leitor conheça a Deus. Isso significa mais do que pensar corretamente sobre Deus.

Significa conhecê-lo pessoalmente. Marcos procura alcançar esse alvo apresentando a pessoa de Jesus Cristo, por estar convencido de que é somente por meio do Filho de Deus que podemos conhecer o Pai.

Embora o próprio Marcos tenha citado o Antigo Testamento somente duas vezes (1.2-3 e 15.24), seu Evangelho inclui um número considerável de alusões e citações sintetizadas tiradas especificamente do Pentateuco, dos Salmos e dos Profetas (incluindo alguma coisa de cada capítulo de Daniel). As citações são combinadas, derivando significância vital a partir de suas sínteses (cf. 1.11; 13.24; 14.62).

Marcos emprega repetições, ciclos, inversões sintáticas e progressões duplas e triplas. Justapõe os pensamentos a fim de grifar comparações e contrastes. O uso dos diálogos e da ironia por Marcos traz o leitor para dentro dos acontecimentos como um participante. Ele geralmente insere histórias dentro de histórias para interpretar a narrativa para o leitor; utilizando algumas vezes paralelismo para comentar ou reforçar significados. Marcos constrói habilmente os significados de termos como “pão” e “caminho”. No esforço de evitar falsas conotações, ele toma especial cuidado com títulos que se referem a Jesus (cf. “Cristo”, em 8.29). Essas e outras características literárias serão consideradas à medida em que aparecerem na narrativa.

Embora nunca use a palavra ekklesia (igreja), Marcos apresenta o crente como membro da família de Deus. Ele esclarece conscientemente a importância da vida e da morte de Jesus para as necessidades da igreja primitiva. Ele põe sobre ela a responsabilidade de chamar as pessoas ao arrependimento e a discipular cada um dos crentes. Marcos percebe quais são as necessidades dos cristãos lutando pela fé num mundo hostil. Sua preocupação se estende até mesmo aos líderes das comunidades, ao sinalizar que eles podem cair nas mesmas armadilhas nas quais a liderança religiosa judaica caiu e, por isso, foi censurada por Jesus.

Pelo fato do Evangelho se constituir numa unidade, o leitor tem que ver o todo para poder entender adequadamente qualquer uma das partes. Infelizmente, nós normalmente lemos os Evangelhos em pequenas porções e as interpretamos sem levar em conta o contexto imediato ou o livro como um todo. O Evangelho de Marcos demanda uma abordagem “holística” (integrada), pois somente poderemos entender uma passagem em particular se considerarmos sua função dentro da narrativa como um todo. Este escritor procura abordar Marcos como um relato coerente, concentrando a atenção no texto como ele se apresenta, com suas sugestões para que se considere seriamente suas incontáveis referências, diretas e indiretas, ao Antigo Testamento.

Os Principais Temas do Evangelho de Marcos

Marcos reuniu muitos episódios da vida e do ministério de Jesus entrelaçando-os criativamente numa nova e vivida unidade. O resultado é uma narrativa unificada e coesa, tendo Jesus Cristo como tema central entre outros que se repetem como uma grande sinfonia através do Evangelho. O multiforme esplendor do Filho de Deus, que é totalmente humano, se revela através da vida, morte e ressurreição de Jesus. Com muita amabilidade e preocupação pastoral, Marcos desenvolve o discipulado como um tema secundário. Esse é inseparável do tema dominante — Jesus —, pois por meio da singular identidade de Jesus, Deus chama homens e mulheres a um discipulado radical.

Numerosos outros temas estão presentes e são claramente detectáveis. Entre eles está o “reino Deus”, uma realidade presente entre os homens, porém ainda não consumada. Esse espalha-se entre as nações sem nenhum alarde: seu triunfo final e universal é aplaudido nos céus.

O tom pastoral aparece e desaparece numa alternância melodiosa. As dissonâncias ressoam à medida em que o reino de Deus entra em conflito com a humanidade centrada em si mesma, e com os poderes políticos e religiosos de expressão cósmica, mas humanos, e satânicos na origem. A harmonia parece rejeitada à medida em que os temas paradoxais do revelado e do oculto, da força e da fraqueza, do primeiro e do último, e da vitória pelo sofrimento são construídos na preparação de um clímax aparentemente impossível. O rei é coroado com espinhos. Rejeitado pelos seus, é aclamado por um dos que o crucificaram. E o pastor afligido ressurge para levar suas ovelhas desgarradas a tornarem-se pescadores de homens entre todas as nações.

Assim como aquele que ouve o coro “Aleluia”, do “Messias” de Handel, jamais se esquece dele, assim também não poderá esquecer-se da sinfonia de paradoxos quem lê Marcos. Somente entrando na história podemos captar sua verdadeira beleza e significado. A medida em que vemos e ouvimos, tocamos, sentimos e inalamos o que está acontecendo com as pessoas retratadas, começamos a sentir o bater de seus corações e a experimentar o verdadeiro sentido e a alegria de seguir a Jesus.

Encorajo o leitor estudar o texto de Marcos antes de ler os comentários que seguem abaixo.

Faça da própria Bíblia o centro de seus estudos. Antes de mais nada, leia e releia o texto para descobrir o que ele diz. O segundo passo, é tentar descobrir o que ela significava para os leitores originais. Somente então o leitor estará apto a perguntar “o que Deus quer de mim à luz dessa passagem?”. O leitor não deve negligenciar esse último passo, pois o estudo bíblico só termina quando é aplicado à vida. O Evangelho não foi escrito apenas para passar informação; foi escrito para transformar vidas.

Um Esboço do Evangelho de Marcos

Ao estudar as Escrituras, devemos ignorar a tradicional divisão do texto em capítulos e versículos, pois ela é geralmente artificial, e algumas vezes até prejudicial. Nossa tarefa requer que descubramos a maneira pela qual o autor dispôs o seu texto original, pois ele se comunica por intermédio do relacionamento de suas unidades literárias tanto quanto pelas palavras. Marcos não representa a simples adição de componentes, mas uma unidade integrada. Desde o princípio o autor constrói sua narrativa em direção ao clímax, empregando habilmente as técnicas literárias já mencionadas.

Na página seguinte inserimos uma “Panorâmica” do que entendemos sejam as divisões básicas do Evangelho de Marcos. Este comentário é também estruturado de acordo com o nosso entendimento de como ele organizou seu material.

Este autor escreve o presente comentário como um seguidor de Jesus Cristo, com o desejo de que este estudo, ainda que imperfeito, encoraje o leitor a seguir a Jesus no seu discipulado radical.

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1- O contexto indicará quando usamos “Marcos” referindo-nos ao “Evangelho segundo Marcos” ou, particularmente, ao seu autor.

1- Palavras de Dibelius, citadas por Howard C. Kee, p. 5. C. H. Turner chamou Marcos de uma “composição ingênua e ilógica” (D. Nineham, p. 215), enquanto outros relacionaram a trama em Marcos com a de um dicionário.

2- Kealy, p. 160._

3- Kelber, Passion, 90. Grifo de Perrin._

4- H.C.Kee_

Mas estudos do livro de Marcos aqui

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