Nesta série de estudos, temos visto claramente que Cristo morreu para nos libertar da condenação da lei (Gálatas 3:10, 13; 4:4-5), e não da obediência à lei. Isso é evidente, já que o problema está no ser humano e em sua desobediência, e não na lei de Deus, que é perfeita.
Essa verdade é confirmada nos capítulos 5 e 6 de Gálatas, que enfatizam a importância da obediência na vida do cristão. Em vez de seguir a “vontade da carne” (Gálatas 5:13), o cristão cumpre “toda a lei”, que se baseia no amor (v. 14). Em Gálatas 5:16-25, Paulo mostra de forma prática o que isso significa.
Luta entre carne e espírito
Em Gálatas 5, Paulo afirma: “A carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam” (Gálatas 5:17, NVI).
Nesse texto, Paulo não se refere a uma luta dos seres humanos em geral, mas especificamente ao “cabo de guerra” interior que existe no cristão. Somente o cristão experimenta esse conflito, porque apenas ele nasceu de novo e possui duas naturezas: pecaminosa (recebida no nascimento comum) e espiritual (recebida no novo nascimento, ou seja, na conversão). Ninguém mais vive esse conflito.
Embora Paulo tenha falado muito sobre a vitória cristã, alcançada por meio de Cristo, ele não apresenta uma vida ilusória, que só existe na mente de algumas pessoas. Ele sabe que a vida é cheia de dificuldades e lutas, principalmente contra o pecado.
“A pena da inspiração, fiel à sua tarefa, nos fala dos pecados que derrotaram Noé, Ló, Moisés, Abraão, Davi e Salomão, e que até mesmo o forte espírito de Elias naufragou quando tentado. […] A desobediência de Jonas e a idolatria de Israel são registradas com absoluta fidelidade. A negação de Pedro de Cristo, a dura contenda entre Paulo e Barnabé, os fracassos e as enfermidades dos profetas e apóstolos, tudo é mostrado pelo Espírito Santo, que levanta o véu do coração humano. […] Ali está diante de nós a vida dos fiéis, com todas as suas faltas e deficiências, as quais se destinam a servir de lição para todas as gerações seguintes. Se tivessem sido sem qualquer fraqueza, eles teriam sido mais que humanos, e nossa natureza pecaminosa haveria de se desesperar por nunca alcançar tal ponto de excelência.”[1]
Gálatas 5:17 tem paralelos com Romanos 7, que também fala sobre o conflito interior que existe nos cristãos. Alguns discordam dessa ideia, e acreditam que esse capítulo trata da vida anterior à conversão. Mas o texto é bastante claro. Note como Paulo menciona a natureza espiritual e a pecaminosa existindo ao mesmo tempo:
- Natureza espiritual: “No íntimo do meu ser tenho prazer na lei de Deus” (Romanos 7:22)
- Natureza carnal: “mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros” (v. 23).
- Natureza espiritual: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! De modo que, com a mente, eu próprio sou escravo da lei de Deus.”
- Natureza carnal: “mas, com a carne, [escravo] da lei do pecado” (v. 25).
O “íntimo” ou a “mente” é a natureza espiritual. A “carne” é a natureza pecaminosa. O cristão possui as duas naturezas. A mensagem básica de Gálatas 5:16 e 17, bem como de Romanos 7:14-25, é que mesmo a obediência do cristão não é perfeita (Filipenses 3:12). Sempre necessitaremos do perdão de Cristo (1João 1:8, 10; 2:1), porque levaremos a luta conosco até a morte ou até a volta de Cristo.
O cristão, o pecado e a obediência
A escritora Ellen G. White explica a relação entre o pecado e a obediência na vida cristã: “A santificação não é obra de um momento, de uma hora, de um dia, mas da vida toda. […] Enquanto reinar Satanás, teremos de sujeitar o próprio eu e vencer os pecados que nos atacam; enquanto durar a vida não haverá momento de repouso, nenhum ponto a que possamos atingir e dizer: ‘Alcancei tudo completamente.’ A santificação é o resultado de uma obediência que dura a vida toda. […]
“Quanto mais nos aproximarmos de Jesus, e quanto mais claramente distinguirmos a pureza de Seu caráter, tanto mais claramente veremos a excessiva malignidade do pecado, e tanto menos nutriremos o desejo de nos exaltar a nós mesmos. […] A cada passo para a frente em nossa experiência cristã, nosso arrependimento se aprofundará.”[2]
O fato de que nossa obediência é imperfeita não deve nos levar a negligenciar a importância dela. Ao contrário do ímpio, aquele que é convertido tem “prazer na lei de Deus” (Romanos 7:22) e de fato lhe obedece. A santificação é como uma escada, e não chegaremos ao topo dela antes da volta de Cristo. Antes disso, não haverá “nenhum ponto a que possamos atingir e dizer: ‘Alcancei tudo completamente’.” No entanto, ao contrário do não convertido, o cristão está subindo os degraus dessa escada. Ele está realmente se tornando mais semelhante a Cristo. Essa é a grande diferença.
Guiados pelo Espírito, na lei
Depois de falar sobre o conflito do cristão, Paulo explicou: “Se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da lei” (Gálatas 5:18). Como já vimos, estar “debaixo da lei” significa viver de forma contrária a ela (Gálatas 3:10) e, portanto, debaixo de sua condenação (v. 13). Não estar “debaixo da lei” é o oposto disso: estar liberto da condenação e viver em harmonia com a lei.
Na cruz, o preço do pecado foi pago e a condenação da lei foi removida (Gálatas 3:13; 4:4-5). Cristo morreu exatamente para que a lei pudesse ser obedecida (Romanos 8:4). Além disso, Deus concedeu o Espírito Santo de forma plena (Gálatas 3:14) para que Seu povo pudesse obedecer à lei como nunca antes (Hebreus 10:15-16). O resultado disso é que podemos ser “guiados pelo Espírito” (viver em harmonia com a lei), em vez de estar “debaixo da lei” (sob a condenação pela desobediência). Por nossas próprias forças, jamais seríamos capazes de fazer a vontade de Deus, mas, quando permitimos que o Espírito Santo atue em nós, é produzido o “fruto do Espírito”.
No Antigo Testamento, Deus havia instruído Seu povo a “andar na lei” (veja Êxodo 16:4; Levíticos 18:4; Jeremias 44:23), ou seja, fazer Sua vontade. Isso poderia ocorrer somente pela atuação de Deus e do Espírito Santo (Deuteronômio 10:12-16). Paulo falou sobre produzir o “fruto do Espírito” (Gálatas 5:22) e “andar pelo Espírito” (v. 25). À luz do que o apóstolo escreveu, isso não é outra coisa senão “andar na lei”. Em vez de anular a lei, a fé confirma a lei (Romanos 3:31).
Depois de mencionar as virtudes que compõem o “fruto do Espírito”, Paulo explica que “contra essas coisas não há lei” (Gálatas 5:23). A expressão significa que tais virtudes “satisfazem plenamente os requerimentos da lei e vão, por assim dizer, além desses requerimentos”. O filósofo grego Aristóteles, falando sobre pessoas “cuja virtude ultrapassa a das demais”, afirmou que “contra essas pessoas não há lei”.[3] A ideia é clara: não há nenhuma lei que proíba a prática de tais virtudes, já que elas cumprem plenamente o que é ensinado por ela (Gálatas 5:14).
Para mostrar a diferença entre a vida de alguém que não foi salvo e a do cristão, Paulo fez uma lista das “obras da carne” e do “fruto do Espírito”.[4] Ele escreveu: “As obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os advirto, como antes já os adverti: Aqueles que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus” (Gálatas 5:19-21).
O fruto do Espírito
Paulo apresenta uma lista de nove virtudes que constituem o “fruto do Espírito”. O escritor e pastor Timothy Keller explica bem cada uma dessas virtudes:
1. Agape = amor. Significa servir uma pessoa para o bem dela e por seu valor intrínseco, não pelo que ela pode nos proporcionar. Seu oposto é o medo: autoproteção e abusar das pessoas. Sua falsificação (imitação falsa) é o afeto egoísta, em que você é atraído por alguém e o trata bem devido ao modo como essa pessoa faz você se sentir acerca de si mesmo.
2. Chara = alegria, o deleite em Deus pela pura beleza e valor de quem ele é. Seu oposto é a desesperança ou o desespero, e sua falsificação, o entusiasmo baseado na experiência de bênçãos, não do Abençoador, provocando oscilações de humor conforme as circunstâncias.
3. Irene = paz, significando a confiança e o descanso na sabedoria e no controle de Deus, em vez de em nós próprios. Substitui a ansiedade e a preocupação. A versão falsa da paz é a indiferença, a apatia e a falta de interesse.
4. Makrothumia = paciência, a capacidade de enfrentar problemas sem perder a cabeça ou partir para o ataque a torto e a direito. Seu oposto é o ressentimento contra Deus e contra os outros. Sua falsificação são o cinismo e a falta de cuidado: Isso é pequeno demais para eu me importar.
5. Chrestotes = benignidade, a capacidade de servir ao próximo de maneira prática e de modo a me tornar sensível, proveniente de uma profunda segurança interior. Seu oposto é a inveja, que me torna incapaz de me regozijar na alegria alheia. E sua alternativa falsificada são as boas obras manipuladoras, ao fazer o bem ao próximo de modo que possa me gloriar e sentir que sou “bom o bastante” para os outros ou para Deus.
6. Agathosune = bondade, integridade, ser a mesma pessoa em qualquer situação, em vez de um impostor ou hipócrita. Não é o mesmo que ser sempre verdadeiro, mas nem sempre amoroso, livrar-se do peso no peito apenas para se sentir bem ou parecer melhor.
7. Pistis =fidelidade, lealdade, coragem, ser plenamente confiável e fiel à própria palavra. Seu oposto é ser oportunista, amigo só nos bons momentos. Sua falsificação é ser amoroso, mas não verdadeiro, de modo que você nunca está disposto ao confronto ou ao desafio.
8. Prauias = amabilidade, humildade, abnegação. O oposto é ser superior ou voltado para o próprio interior. Humildade não é o mesmo que inferioridade (veja o próximo capítulo).
9. Egkrateia = domínio próprio, a capacidade de colocar o importante acima do urgente, em vez de ser sempre impulsivo ou descontrolado. A falsificação levemente surpreendente é a força de vontade baseada no orgulho, a necessidade de se sentir no controle.[5]
Depois de ter mencionado as “obras da carne” e o “fruto do Espírito”, Paulo fez o seguinte apelo: “Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos. Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito” (Gálatas 5:24, 25).
Pelo poder do Espírito Santo, os que pertencem a Cristo mantêm a natureza pecaminosa sob controle. A natureza pecaminosa só estará completamente eliminada por ocasião da volta de Jesus, quando seremos todos transformados, mas não é mais essa natureza que exerce o controle sobre nós. Pode ser que venhamos a cometer pecados acidentais, como vimos acima, mas quem controla o curso de nossa vida agora é o Espírito. O cristão peca, mas não vive em pecado, não é dominado pelo pecado. Em outras palavras, a tendência da vida cristã é caracterizada pelo fruto do Espírito (as virtudes produzidas pelo Espírito Santo) e não pelas obras da carne.
Perguntas para reflexão e aplicação
1. Como tem sido sua experiência de “andar no Espírito”? Como você faz isso? Quais práticas em sua vida dificultam esse tipo de caminhada?
2. Com base em sua experiência da batalha entre as duas naturezas (carnal e espiritual), qual conselho você daria para um cristão que esteja tentando resolver essa luta interminável contra si mesmo?
3. Examine a lista de “obras da carne”. Você considera cada uma delas como transgressão de um ou mais dos Dez Mandamentos?
4. Quanta abnegação está envolvida no amor? Você pode amar sem renunciar a si mesmo? O que Jesus nos ensinou sobre amor e abnegação?
5. O esforço humano desempenha algum papel na produção do fruto do Espírito? O que sua experiência diz sobre esse papel?
6. Qual é a maior luta que você enfrenta em sua caminhada com o Senhor? Não é o pecado e a influência dele sobre seu relacionamento com Deus? Por que devemos sempre lembrar que nossa salvação depende totalmente do que Jesus fez por nós?
7. Que obras da carne você enxerga em sua vida?
8. Quais são os “superdesejos” que fazem com que você pense ou se comporte sob a ação desses impulsos?
9. Como você pregará a si mesmo o evangelho da graça e da aceitação de Deus com o intuito de destruir esses superdesejos?[6]
Referências
1. Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), v. 4, p. 12.
2. Idem, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 560-561.
3. Richard N. Longenecker, Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41 (Nashville, TN: Thomas Nelson, 1990), p. 263-264.
4. Para saber mais sobre esse tema, veja o livro do teólogo William Barclay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito (São Paulo: Vida Nova, 1988).
5. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 161-163.
6. As perguntas 7 a 9 foram extraídas de Keller, Gálatas Para Você, p. 158.