“Vimos Paulo dizer (repetidas vezes!) aos gálatas que os cristãos não precisam temer nenhuma condenação em virtude de seu fracasso na obediência à lei, pois são justificados em Cristo. Muita gente, quando ouve isso, exclama: Uau! Se acreditasse nisso, eu seria capaz de viver do jeito que bem entendesse!
“À primeira vista, o evangelho parece afastar todo incentivo para se levar uma vida santa. […] Portanto, chegamos a uma passagem crítica. Paulo quer nos mostrar que a liberdade do medo e da condenação trazida pelo evangelho nos leva a obedecer a Deus, não a nos satisfazer.”[1]
“O ensino dos judaizantes era: A menos que sejam circuncidados e obedeçam a lei, vocês não poderão ser salvos (veja Atos 15.1, 5). Paulo retruca que, pelo contrário, se adotarem esse ensino e o seguirem, aí sim não poderão ser salvos: ‘Cristo de nada vos servirá’ (Gálatas 5.2).
“De novo vemos Paulo repetir uma ideia que já tinha esclarecido na carta (nesse caso, no capítulo 1). Portanto, mais uma vez precisamos lembrar que as Escrituras se repetem com um propósito definido: porque precisamos ouvir e continuar ouvindo sempre!
“Paulo quer que os gálatas se lembrem de que não se pode acrescentar nada a Cristo sem subtrair Cristo. Ou ele é tudo para eles ou não é nada. Se a obediência à lei se tornar parte do sistema de salvação deles, será o único sistema de que disporão, de modo que ficarão ‘[obrigados] a cumprir toda a lei” (v. 3) – o que, como vimos, é simplesmente impossível (3.10, 11). Justificação por meio da lei é autossalvação, é estar ‘separados de Cristo’ (v. 4). Não temos como nos apegar à graça se vivermos pelas obras (v. 4).”[2]
Com isso em mente, neste estudo, vamos analisar um pouco a maneira como Paulo exaltou a santidade e a obediência à lei de Deus.
Em Gálatas 1-3, existem vários textos “negativos” sobre a lei, em que o apóstolo explica que Cristo nos libertou de sua condenação. Mas, em Gálatas 5 e 6, Paulo falou sobre a vida cristã, guiada pelo Espírito Santo e que está em harmonia com a lei de Deus. Libertos da condenação da lei, nós estamos plenamente livres para obedecer-lhe (Romanos 8:1, 3-4). Essa é a verdadeira “liberdade em Cristo”. Sendo que agora começamos a estudar o capítulo 5, este é o momento oportuno de analisar brevemente o que Paulo escreveu sobre a obediência à lei.
Paulo versus a lei de Deus?
De vez em quando encontramos duas posições extremadas quanto à guarda da lei, ou o ensino de Paulo sobre a lei. De um lado, há aqueles que afirmam corretamente que devemos ensinar sobre a obediência à lei, porque uma das características do povo de Deus no tempo do fim é a guarda dos “mandamentos de Deus” (Apocalipse 12:17; 14:12). Mas, na prática, essas pessoas não examinam profundamente o que o Novo Testamento, especialmente Paulo, ensina sobre a lei. A verdade é que esse grupo parece ter receio de estudar algumas cartas desse apóstolo (especialmente Romanos e Gálatas) porque, inconscientemente, imagina que Paulo não exaltou a obediência como deveria.
Do outro lado, há os que afirmam ter grande compromisso com o ensino da Bíblia (principalmente do Novo Testamento), mas, às vezes, chegam à conclusão de que devemos enfatizar a salvação pela graça, a cruz de Cristo, e deixar de lado assuntos como a santificação e a obediência a normas morais. Para esses cristãos, o ensino de algumas denominações sobre a obediência à lei de Deus não passa de uma abordagem legalista e antiquada.
Portanto, o resultado é que algumas pessoas veem uma contradição entre o ensino do Novo Testamento (especialmente de Paulo) e o ensino do Antigo Testamento sobre a lei. Neste estudo, veremos que Paulo jamais subestimou a importância da lei de Deus, mas a exaltou quase como ninguém mais. Em vez de existir contradição entre suas cartas e o ensino do restante da Bíblia, eles estão em perfeita harmonia. Pela limitação de espaço, naturalmente, estudaremos uns poucos textos apenas.
O cumprimento da lei em Gálatas
Em Gálatas 5 e 6, Paulo esclareceu que, embora libertados da condenação da lei, não estamos “livres” para pecar. Nesse contexto, o apóstolo destaca a contínua validade da lei na vida do cristão. Para não deixar margem a nenhuma dúvida, o apóstolo escreveu: “Porque vocês, irmãos, foram chamados à liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à carne; pelo contrário, sejam servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: ‘Ame o seu próximo como a você mesmo’” (Gálatas 5:13-14).
Esse texto nos lembra Romanos 6:15, que já mencionamos nesta série de estudos. Neste último versículo, Paulo faz questão de explicar que os salvos (isto é, que estão debaixo da graça e não mais debaixo da lei) não estão de forma nenhuma livres para pecar. Ou seja, a salvação não nos isenta da obediência à lei, visto que pecado é precisamente a transgressão da lei (1João 3:4). Estar debaixo da graça significa tornar-se servo de Cristo para a obediência e a santidade (Romanos 6:16-18).
Em Gálatas 5:14, Paulo faz uma declaração muito contundente sobre a validade da lei: “Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: ‘Ame o seu próximo como a você mesmo.’” A palavra destacada é a mesma que aparece no texto bastante conhecido: “Não pensem que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, mas para cumprir” (Mateus 5:17). Essa palavra significa satisfazer plenamente, levar algo à sua plenitude. Portanto, com a morte de Cristo, a lei não perdeu sua força, mas a obediência a ela foi fortalecida.
Em Gálatas 5:14, Paulo destaca o grande princípio da lei: o amor ao próximo. Ele deixa subentendido o amor a Deus provavelmente pelo fato de que apenas quem ama a Deus pode amar verdadeiramente as outras pessoas (veja 1João 4:19-21). Ou seja, é impossível amar o próximo sem amar a Deus. Nesse texto, Paulo poderia ter dito que o amor substituiu a lei, que uma pessoa que ama não mais precisa guardar a lei. Mas ele ensina explicitamente o oposto: a essência da guarda da lei é o amor; quem ama cumpre a lei.
Note igualmente que Paulo se refere a “toda a lei”, e não a apenas algumas partes dela. Se algum mandamento da lei (como o sábado) tivesse se tornado obsoleto, esse seria o momento ideal para afirmar isso. No entanto, nem aqui nem em qualquer outra parte de seus escritos, Paulo ensinou que o mandamento do sábado teria se tornado irrelevante. O grande equívoco de muitos cristãos é se esquecerem de um fato óbvio: o sábado é parte da lei moral de Deus. E Paulo jamais fez uma exceção, afirmando que o sábado tivesse deixado de ser parte da lei.
Um dos estudos mais importantes sobre a lei na Carta aos Gálatas, produzido por um teólogo evangélico, conclui: “Em conclusão, podemos dizer que embora a lei, como resultado da redenção efetuada por Cristo, tenha perdido suas funções distintivas [1] como obrigação da aliança do Sinai [isto é, parte da antiga aliança, estabelecida com a nação de Israel] e [2] como um poder escravizador [isto é, que trazia condenação e morte ao transgressor], para Paulo a lei ainda atua [3] como expressão da vontade de Deus [devendo ser cumprida pelo cristão que experimentou a salvação pela graça]. […] Paulo fala tanto de um propósito negativo quanto de um propósito positivo da lei.”[3]
O cumprimento da lei em outras cartas de Paulo
Dois textos de Romanos apresentam a mesma ideia que Gálatas 5:14. Em um deles, Paulo explica que Cristo veio à Terra e morreu “a fim de que as justas exigências da lei fossem plenamente satisfeitas em nós, que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Romanos 8:4, NVI). Em vez de abolir a lei, a morte de Cristo nos capacitou a viver em plena conformidade com os requisitos da lei. Todo o plano da salvação foi elaborado e concretizado para que o ser humano estivesse novamente em harmonia com a vontade de Deus. Romanos 8:4 é um dos textos mais claros e enfáticos de Paulo sobre a contínua validade da lei.
Outro texto semelhante a Gálatas 5:14 é Romanos 13:8-10, que afirma: “Pois quem ama o próximo cumpre a lei”, pois “todos” os mandamentos “se resumem nesta palavra: ‘Ame o seu próximo como você ama a si mesmo.’ […] Portanto, o cumprimento da lei é o amor.” Novamente, é enfatizado o cumprimento da lei. Romanos 13:8-10 também deixa clara a relevância de toda a lei, pois afirma que “todos” os mandamentos estão incluídos nesse cumprimento.
Em vários textos, Paulo fala sobre a obediência aos mandamentos de Deus. Ele afirma: “A circuncisão, em si, não é nada; a incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar os mandamentos de Deus” (1Coríntios 7:19). A palavra “mandamentos” obviamente se refere aos mandamentos da lei de Deus (Romanos 7:8-9; 13:9). Portanto, devemos, sim, guardar os mandamentos. Mas Paulo não se limitou a dizer que toda a lei deve ser guardada. Ele citou vários mandamentos específicos da lei, mostrando que ela continua a ser um guia para o comportamento cristão. Paulo se refere, por exemplo, aos mandamentos que proíbem idolatria (1Coríntios 10:14, 20-21), adultério, assassinato, furto, cobiça (Romanos 13:9) e o que pede que os pais sejam honrados (Efésios 6:1, 2).
O que Paulo escreveu sobre a obediência é bem resumido pelo famoso versículo: “Anulamos, então, a lei por meio da fé? De modo nenhum! Pelo contrário, confirmamos a lei” (Romanos 3:31).
Pecado como transgressão da lei
Todos nós conhecemos o texto de João: “O pecado é a transgressão da lei” (1João 3:4). Mas é importante notar que Paulo ensinava o mesmo (Romanos 2:12, 23, 25, 27; 3:20). Somente por meio da lei é que sabemos o que é pecado (Romanos 7:7). A condenação eterna é o resultado da transgressão à lei (Romanos 4:15). A vida do ímpio é resumida no fato de que ele “não se submete à lei de Deus, nem pode fazê-lo” (Romanos 8:7-8, NVI).
Cristo morreu precisamente para nos libertar da antiga vida de transgressão da lei. A graça de Deus “nos ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente”. Cristo morreu “a fim de nos libertar de toda a transgressão da lei [em grego, anomia] e purificar para Si mesmo um povo particularmente Seu, dedicado à prática de boas obras” (Tito 2:12-14, tradução literal).
Existe outro texto em que Paulo fala sobre a transgressão da lei, mas que é pouco citado por adventistas nesse contexto. Em 2 Tessalonicenses 2, Paulo escreveu a respeito do “homem do pecado”, o mesmo poder conhecido como “chifre pequeno” (Daniel 7:8, 11, 24, 25) e besta que sai do mar (Apocalipse 13:1-10). Em sua explicação, o apóstolo se baseou em Daniel 7 e 8. De acordo com Daniel, esse poder tentaria “mudar os tempos e a lei” de Deus (Daniel 7:25). Paulo apresentou a mesma ideia: “Antes daquele dia [a volta de Cristo] virá a apostasia e, então, será revelado o homem do pecado, o filho da perdição. […] O mistério do afastamento da lei [em grego, anomia] já está em ação […]. Então será revelado aquele que se afasta da lei [em grego, anomos], a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de Sua boca” (2 Tessalonicenses 2:3, 7, 8, tradução literal). Assim como Daniel, Paulo ensinou que uma notável característica desse poder que se opõe a Deus seria a rejeição de Sua lei.
Lei abolida na nova aliança?
Muitos cristãos ensinam que, durante a época do Antigo Testamento, o povo de Deus precisava guardar a lei, mas hoje não precisamos mais fazê-lo. Para essas pessoas, a lei foi abolida na cruz e, na nova aliança, estamos livres da obrigação de guardar os mandamentos. No entanto, vários textos de Paulo mostram que a verdade é exatamente o oposto.
De acordo com Paulo, a lei é santa, justa, boa (Romanos 7:12) e espiritual (verso 14). Não há nada de errado com ela, mas com o ser humano que não a obedece (Romanos 7:10; 8:3). A lei revela a perfeita vontade de Deus para nós (Romanos 2:17-18). Ela sempre foi e continua sendo a lei de Deus (Romanos 7:22, 25), e não meramente a lei de Moisés ou dos judeus. Portanto, não haveria necessidade de que o conteúdo da lei fosse alterado na nova aliança.
A Carta aos Hebreus fala extensamente sobre a antiga e a nova aliança, assunto que já estudamos. O autor explica que o sacrifício de Cristo substituiu as leis relacionadas aos rituais do templo e as tornou desnecessárias (Hebreus 7:18; 10:1-4). Por outro lado, Hebreus mostra a contínua validade da lei moral de Deus na nova aliança. Citando a promessa de Jeremias 31:33, a epístola afirma: “Porei Minhas leis em sua mente e as escreverei em seu coração. […] Porque Eu lhes perdoarei a maldade e não Me lembrarei mais dos seus pecados” (Hebreus 8:10, NVI; veja 10:16).
A mensagem desses textos é a mesma apresentada em Gálatas: Deus nos perdoa os pecados, livra da condenação da lei e nos habilita a obedecer Sua lei. Note que o texto não se refere a novas leis, mas a “Minhas leis”, aquelas que já existiam – as mesmas dadas ao povo de Israel no Monte Sinai. Portanto, a obediência a Deus, mencionada em muitos textos de Paulo, não deve ser entendida num sentido vago ou abstrato. A transformação realizada pelo Espírito Santo está em completa harmonia com a vontade de Deus revelada na Torá.
Na antiga aliança, a lei estava escrita em tábuas de pedra, que traziam “morte” (2Coríntios 3:7) e “condenação” (verso 9) aos pecadores. Segundo a promessa que vimos acima, na nova aliança, a lei perde seu aspecto negativo e condenatório para os salvos e volta a ser o que era na época dos patriarcas: gravada no coração (veja o estudo 6).
As declarações de Paulo sobre a obediência na nova aliança se baseiam em promessas do Antigo Testamento. O Espírito Santo sempre atuou no povo de Deus e a lei era obedecida pelos fiéis (Deuteronômio 6:6; Salmo 40:8). Essa transformação realizada pelo Espírito Santo desde aquela época era chamada de “circuncisão do coração” (Deuteronômio 10:16; 30:6; Jeremias 4:4). Mas, além disso, Deus prometeu que, quando o Messias viesse, o Espírito Santo seria concedido de forma ainda mais poderosa (Isaías 44:3; Joel 2:28-29) e a obediência à lei se tornaria ainda mais intensa (Ezequiel 11:19-20; 36:26-27).
Com a vinda de Cristo, essas promessas se tornaram uma realidade. Deus enviou o Espírito Santo em plenitude para nos transformar e nos pôr em harmonia com Sua vontade (Romanos 2:28-29; 7:6; 2Coríntios 3:6). O Espírito Santo nos capacita a ter uma nova vida, de obediência e santidade (Romanos 8:4-6, 9-14; Gálatas 5:16-18). Em vez de eliminar a obediência à lei de Deus, a nova aliança a consolida mais do que nunca.
Conclusão
Os oponentes de Paulo acreditavam que a lei devia ser obedecida como um meio de alcançar o favor de Deus e a salvação. Esse é o mesmo erro no qual muitos cristãos ainda incorrem hoje. O apóstolo ensinou que a lei deve verdadeiramente ser obedecida, mas como resultado da obra de Deus em nós. Ninguém pode sequer entrar em um relacionamento de salvação com Deus por meio da lei.
A obediência pode ser realizada somente por meio da fé. Então, o Espírito Santo nos transforma, subjuga nossa natureza pecaminosa, circuncidando nosso coração e gravando nele os princípios da lei de Deus, capacitando-nos assim a obedecê-la. De acordo com Paulo, isso se tornou uma realidade mediante Jesus Cristo. Portanto, o raciocínio do apóstolo é o oposto daquele mantido por muitos cristãos. Se, no Antigo Testamento, a lei de Deus era obedecida, quanto mais depois da morte de Cristo!
Perguntas para reflexão e aplicação
1. Você se sente escravizado por alguma coisa? Memorize Gálatas 5:1 e peça a Deus que torne real em sua vida a liberdade em Cristo.
2. O que é mais fácil, e por quê: amar os outros, ou simplesmente obedecer aos Dez Mandamentos? Explique.
3. Paulo disse que a fé “atua” pelo amor (Gl 5:6). O que ele quis dizer com essas palavras?
4. Por que é tão fácil usar a liberdade em Cristo para se entregar ao
qual armadilha estão caindo os que fazem essa escolha? (1Jo 3:8).
5. Você já chegou perto de perder (ou perdeu de fato) a liberdade que o evangelho lhe dá? Como isso aconteceu? Que lições você tira dessa experiência?
6. Que diferença a esperança da garantia futura faz em sua vida agora? (Veja Gl 5:5.)
7. Você reage a seus sucessos e fracassos de maneira compatível com o evangelho ou com base na justificação pelas obras?
8. Em que situações você acha difícil amar os outros? Como o fato de se lembrar de sua esperança aumentará seu amor?
9. Pense em um pecado contra o qual você vem lutando. Por que você deseja pecar dessa maneira? Como sua liberdade no evangelho corrói essa motivação para o pecado?[4]
Referências
1. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 136.
2. Ibid., p. 139.
3. In-Gyu Hong, The Law in Galatians, Journal for the Study of the New Testament Supplement Series, v. 81 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993), p.188, 197, grifos nossos.
4. As perguntas 5 a 9 foram retiradas de Keller, Gálatas Para Você, p. 142, 151.