Este artigo foi traduzido para o português, a partir do francês Lire Ellen White, por Ruth Mª C. Alencar. Título do original em inglês, Reading Ellen White: How to Understand and Apply Her Writings (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1997, escrito pelo pastor George Knight.
“Eu fui levado a crer firmemente que cada palavra pronunciada por você, em público ou em particular, e cada letra escrita por você, não importa a circunstância, são inspiradas, no mesmo nível que os dez mandamentos. Apeguei-me a esta idéia com uma absoluta tenacidade face as inumeráveis objeções que foram levantadas por muitos que ocupavam uma posição de destaque na causa (adventista)”, escreveu Dr. David Paulson à Ellen White no dia 19 de abril de 1906. Profundamente preocupado pela natureza da inspiração de Ellen White, Paulson se perguntava se ele devia continuar a apoiar um ponto de vista assim tão rígido. Assim fazendo, ele levantava a questão da inspiração verbal e as que com ela se relacionavam, ou seja, a infalibilidade e inerrância.
Visto que uma boa compreensão de tais questões é de importância determinante na leitura de Ellen White e da Bíblia, nós o examinaremos neste capítulo.
Ellen White respondeu a Pauson no dia 14 de junho de 1906. “Meu irmão, tendes estudado diligentemente meus escritos, e nunca encontrastes quaisquer reivindicações dessas de minha parte (inspiração verbal), nem achareis que os pioneiros de nossa causa as fizessem.” (Mensagens Escolhidas vol. 1, pág. 24) Ela continua ilustrando a inspiração de seus escritos por uma referência aos autores da Bíblia. Embora Deus tenha inspirado as verdades bíblicas, elas foram “expressas em palavras de homens”. Ellen White via na redação da Bíblia “apresenta uma união do divino com o humano”. Assim,“o testemunho é transmitido mediante a imperfeita expressão da linguagem humana, e não obstante é o testemunho de Deus;” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 26)
Freqüentemente Ellen White expressou esta convicção. “A Bíblia”, escreveu ela em 1889, “foi escrita por homens inspirados, mas não é a maneira de pensar e exprimir-se de Deus. Esta é da humanidade. Deus, como escritor, não Se acha representado. […]
“Não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, mas os homens é que o foram. A inspiração não atua nas palavras do homem ou em suas expressões, mas no próprio homem que, sob a influência do Espírito Santo, é possuído de pensamentos. As palavras, porém, recebem o cunho da mente individual. A mente divina é difusa. A mente divina, bem como Sua vontade, é combinada com a mente e a vontade humanas; assim as declarações do homem são a Palavra de Deus.” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 21)
Esta declaração é tão clara quanto rica de sentido como a que poderíamos encontrar em qualquer outro lugar sobre o assunto da inspiração verbal e inspiração do pensamento. De sua própria experiência ela escreve: ”Se bem que eu dependa tanto do Espírito do Senhor para escrever minhas visões como para recebê-las, todavia as palavras que emprego ao descrever o que vi são minhas, a menos que sejam as que me foram ditas por um anjo, as quais eu sempre ponho entre aspas.” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 37)
A tese que ela adota a propósito do pensamento em relação à inspiração verbal é esta que foi oficialmente aceita pela denominação na sessão da Conferência Geral de 1883. Parte da resolução é assim lida: “Cremos que a luz dada por Deus a Seus servos vem pela iluminação do Espírito, a comunicação do pensamento e não (exceto em raros casos) palavras pelas quais as idéias devem ser expressas.” (Review and Herald, 27 de novembro de 1883)
Entretanto, esta posição foi mais facilmente votada que aceita. Assim Willie White escreveu mais tarde que a teoria da inspiração verbal tem infiltrado o adventismo ao longo da última parte do século XIX. Sua aceitação, acrescenta ele, tem causado a “introdução em nossa obra de questões e perplexidades sem fim, e em constante aumento”. (Mensagens Escolhidas, vol. 3, pág. 454)
A natureza problemática desta questão encontra sua ilustração na vida de D.M.Canright, importante pregador adventista entre 1887 e 1919. Canright se opôs amargamente a Ellen White. Em seu livro, escrito contra ela em 1919, ele afirmou que “ela pretendia que cada linha escrita por ela, quer seja em artigos, cartas, testemunhos ou livros lhes tinham sido ditados pelo Espírito Santo e deveria então ser infalível.” (Life of Mrs Ellen G. White, p. 9)
Vimos acima que Ellen White mesma tomou posição completamente contrária, mas isto não freou os estragos cometidos por aqueles que desenvolveram uma falsa teoria de inspiração. Isto não afetou somente os que rejeitavam o adventismo e o dom de Ellen White, em parte por causa de sua visão rígida de inspiração (como a de Canright), mas uma crença errada no verbalismo deformou o ponto de vista de muitos dos que permaneciam no coração da Igreja. Assim C. Willie escreveu à S. N. Haskell, em 1911: “Existe o perigo de fazer injúria aos escritos de minha mãe ao lhe atribuir mais do que ela mesma pretendeu, mais que meu pai tenha feito, e mais que os irmãos Andrews, J.H.Waggoner ou Smith jamais tenham reivindicado. Não posso ver coerência em sua maneira de reivindicar a inspiração verbal quando minha mãe jamais teve tal pretensão.” (W.C.White à S.N. Haskell, 31 de outubro de 1912)
Haskell respondeu a White dois meses mais tarde afirmando que o ponto de vista de Willie C. White sobre a inspiração “colocava as bases de uma enorme prova para os testemunhos.” Haskell continuou dizendo que “os que são mais fortes (na fé) são os que têm uma confiança ilimitada nos escritos de sua mãe. Os que cavalgam sobre uma sela instável são os que cedo ou tarde dão o passo e crêem nos testemunhos, ou se retiram, os abandonam e apostatam.” (S.N. Haskell à W.C. White, 8 de janeiro de 1913)
Willie White retomou seu pensamento uma semana após que Haskell lhe escreveu sua carta. O filho de Ellen White lhe respondeu: “[Eu sou] consciente que um grande número de líderes estão determinados a permanecer leais com relação aos Testemunhos e que alguns dentre eles estimam que uma das dificuldades mais sérias para preservar a fidelidade de seus irmãos em relação aos Testemunhos vem do fato que alguns homens com idade e experiência [tal como Haskell] insistem em lhes impor a teoria da inspiração verbal que nem minha mãe, nem a Conferência Geral nem meu pai sustentaram. Alguns me fizeram ver que as posições extremas e extravagantes sustentados por alguns, o senhor inclusive, agitam mais a confiança nos testemunhos que qualquer outra coisa na obra.” (CW.C.White à S.N. Haskell, 15 de janeiro de 1913)
O trágico, entre as trocas entre W.C White e Haskell, é que Haskell defendia uma posição que Ellen White tinha explicitamente rejeitado em um post-scriptum a uma das cartas de seu filho à Haskell. Sobre uma cópia de carbono da carta de 31 de outubro à Haskell, citada acima, carta na qual Willie afirma em termos precisos que Haskell e outros causavam dano à sua obra tendo uma posição muito radical em relação aos seus escritos, ela escreveu: “Aprovo todas as observações feitas nesta carta”, depois ela assinou seu nome. É uma pena que Haskell nunca tenha visto essa anotação. É muito provável que W.C.White não a tenha visto também, pois existiam muitas cópias carbono dessa carta. Se ele tivesse lido o documento portando o post-scriptum, ele o teria endereçado à Haskellapoiando então seus argumentos. Mas ele não o fez.
Infelizmente, o argumento da inspiração verbal prosseguiu até os anos de 1920. Assim B.L. House escreveu, no seu livro Analytical Studies in Bible Doctrines for Seventh-day Adventist College (1926), editado pela Igreja, que a seleção “mesmo das palavras das Escrituras na língua original foi conduzida pelo Espírito Santo”. (pág. 66)
Esta posição é com certeza a posição que Ellen White rejeitou em teoria e prática ao longo do seu ministério. Willie C. White se expressou sobre a inspiração verbal quando alguns perguntaram sobre a revisão do Grande Conflito, em 1911. Ele declarou aos delegados da Conferência Geral: “Minha mãe nunca fez reivindicações à inspiração verbal” e os fundadores do adventismo muito menos. E Wlllie White apresentou um argumento irrefutável quando declarou: “Caso houvesse inspiração verbal ao ela escrever seus manuscritos, por que haveria de sua parte o trabalho de acréscimo ou de adaptação? Verdade é que Mamãe muitas vezes toma um de seus manuscritos e o lê atentamente, fazendo acréscimos que desenvolvem ainda mais o pensamento.” (Mensagens Escolhidas vol. 3, pág. 437)
É lamentável que o debate não tenha findado com as tentativas de Willie White e de sua mãe para fechar a questão. Apesar de suas claras declarações, muitos hoje têm ainda por inspiração verbal e seus parentes próximos: inerrância e infalibilidade. Iremos agora analisar essas duas últimas questões.
No terreno da infalibilidade, encontramos novamente adventistas que excedem o pensamento de Ellen White. Por exemplo, um evangelista renomado afirmou em 1970 que “a natureza mesmo de nosso Deus exige uma Bíblia infalível”, que a Bíblia reivindica a infalibilidade e que “Jesus, o chefe glorioso do Céu, aceita as Escrituras como inerrantes.” Ele reivindicava que a Bíblia era perfeitamente isenta de todo tipo de erro. Apesar de tudo, dizia ele, se a Bíblia se engana sobre um fato particular qualquer, “por que não teria também erros de teologia e de salvação?” (Ministry, janeiro 1970, p.6)
Antes de irmos mais adiante, talvez devêssemos definir nossas palavras. Le Webster’s New World Dictionary dá por “infalível”: ”1. Incapacidade de erro, nenhuma falta. 2. Incapacidade de falta, de mal feitos, de cometer um erro etc.” São essencialmente essas definições que muitos importam no terreno da Bíblia e dos escritos de Ellen White.
Com relação à infalibilidade, Ellen White escreveu claramente: “Com relação à infalibilidade, nunca a pretendi; unicamente Deus é infalível.” Ela diz ainda que “Unicamente Deus e o Céu são infalíveis.” (Mensagens Escolhidas vol. 1, pág. 37). Embora ela afirme que “a Palavra de Deus é infalível.” (Mensagens Escolhidas vol. 1, pág. 416), veremos mais adiante que ela não entendia que a Bíblia ou seus escritos eram isentos de erros em certos pontos.
Ao contrário, na introdução do livro Grande Conflito, ela expressa sua posição de maneira concisa: “Em Sua Palavra, Deus conferiu aos homens o conhecimento necessário à salvação. As Santas Escrituras devem ser aceitas como autorizada e infalível revelação de Sua vontade.” (Grande Conflito, pág. 7) Isto é, que a obra dos profetas de Deus não é infalível em relação a vontade de Deus para os homens e mulheres. Em uma declaração similar, Ellen disse: “Sua Palavra […] é clara concernente a todos os pontos essenciais para a salvação da alma.” (Testemunhos Para a Igreja pág. 706)
Willie White trata da mesma questão quando ele disse: “onde ela seguiu a descrição de historiadores ou a exposição de escritores adventistas, creio que Deus lhe deu discernimento para usar aquilo que é correto e que está em harmonia com a verdade acerca de todas as questões essenciais à salvação. Se por meio de diligente estudo for constatado que ela seguiu algumas exposições da profecia que nalgum pormenor referente a datas não possamos harmonizar com nossa compreensão da história secular, isto não influirá sobre a minha confiança nos seus escritos como um todo, assim como a minha confiança na Bíblia também não é influenciada pelo fato de que não consigo harmonizar muitas das declarações relacionadas com a cronologia.” (Mensagens Escolhidas vol. 3, pág. 449-450)
Howard Marshall desenvolve essa opinião quando ele diz que “a intenção de Deus na composição das escrituras era de conduzir Seu povo para a salvação e à maneira de viver em conseqüência. Podemos certamente concluir que Deus fez da Bíblia o que ela deve ser para alcançar este alvo. É neste sentido que a palavra “infalível” se aplica convenientemente à Bíblia. Significa que ela é nela mesma um guia autêntico e suficiente no qual podemos ter uma confiança implícita. […] Podemos então afirmar que a infalibilidade da Bíblia significa que ela é inteiramente digna de confiança em relação aos alvos pelos quais Deus a inspirou.” (Biblical Inspiration, p. 53) Resumindo, vemos que o emprego do termo infalibilidade por Ellen White significa que a Bíblia é totalmente digna de confiança para conduzir à salvação. Este pensamento não deve ser confundido com o conceito segundo o qual a Bíblia ou seus escritos são isentos de erro de natureza fatual.
Ellen White não anda em círculos sobre este assunto. Ela reconhece abertamente a possibilidade de erros de detalhes relativos a fatos na Bíblia. “Alguns nos olham seriamente e dizem: “Não acha que deve ter havido algum erro nos copistas ou da parte dos tradutores?”Tudo isso é provável, e a mente que for tão estreita que hesite e tropece nessa possibilidade ou probabilidade, estaria igualmente pronta a tropeçar nos mistérios da Palavra Inspirada, porque sua mente fraca não pode ver através dos desígnios de Deus. […] Mesmo todos os erros não causarão dificuldade a uma alma, nem farão tropeçar os pés de alguém que não fabrique dificuldades da mais simples verdade revelada.” (Mensagens Escolhidas vol. 1, pág. 16)
Assim, a fé do fiel leitor não é agitada se ele descobre que Mateus cometeu um erro atribuindo uma profecia messiânica, escrita séculos antes do nascimento de Cristo por Zacarias, que anunciava que o Messias seria vendido por trinta moedas de prata (ver Mateus 27:9-10; Zacarias 11: 12-13). Ninguém será também consternado pelo fato de Samuel 16: 10-11 faz de Davi o oitavo filho de Isaías, quando 1 Crônicas 2:15 o faz o sétimo. Muito menos a fé não será afetada por Natã ter aprovado plenamente Davi em seu projeto de construir o templo e teve que se retratar no dia seguinte e dizer a Davi que Deus não desejava que ele o construísse (ver 2 Samuel 7; 1 Crônicas 17). Os profetas cometem erros.
Podemos encontrar o mesmo tipo de erro nos escritos de Ellen White. Os escritos dos profetas de Deus são infalíveis como guias de salvação, mas eles não são inerrantes ou sem erros. A lição que podemos tirar é que é preciso pesquisar a mensagem central das Escrituras e dos escritos de Ellen White, ao invés de nos prender aos detalhes. Falamos no capítulo 7 e retornaremos no capítulo 18.
O que é importante de lembrarmos aqui, é que os que se confrontam com problemas tais como a inerrância e a infalibilidade absoluta afrontam um problema de origem humana. Não é algo que Deus reivindicou para a Bíblia ou Ellen White para a Bíblia ou para seus escritos. Para ela, a inspiração tinha “fins práticos” (Mensagens Escolhidas vol. 1, pág. 20) as relações entre o humano e o divino no plano da salvação.
É preciso que deixemos Deus nos falar segundo o Seu modo de expressão, ao invés de impor nossas regras aos profetas de Deus e de rejeitá-los porque eles não responderam nossas expectativas sobre o que pensamos que Deus poderia ter feito. Tal abordagem é de invenção humana e impõe nossa própria autoridade à Palavra de Deus. Nós nos fazemos juízes de Sua Palavra. Porém, tal posição não é bíblica. Muito menos está ela de acordo com os conselhos dados por Ellen White à Igreja. É preciso que leiamos a Palavra de Deus e os escritos de Ellen White com o fim que eles nos foram dados e não permitamos que nossos conceitos modernos e nossas definições de intenção e de exatidão sejam colocados entre nós e os profetas de Deus.
C.S. Longacre, defensor durante anos da liberdade religiosa no seio da Igreja adventista disse: ”Você e alguns outros, cuja confiança nos testemunhos de Ellen White naufragou, elaboraram suas próprias regras de infalibilidade de seus escritos e do que ela disse ocasionalmente, regras que ela mesma não estabeleceu porque não se baseou por elas. Vocês literalmente exageraram e fizeram dela um falso profeta. O problema colocado por A. T. Jones, os Ballengers, “e outros” que perderam a confiança nos testemunhos da irmã White, provém do fato que tomaram posição extrema e fizeram de Ellen White uma divindade, uma super mulher, e tudo que poderia dizer ou escrever, sob qualquer forma. Quando ela não correspondeu ao “espantalho” ou aos falsos modelos que eles estabeleceram em sua correspondência particular e pessoal ou nos conselhos que ela deu, eles perderam a confiança e a queimaram como um falso profeta. É assim que acaba a maioria dos extremistas em relação aos testemunhos.” (C.S. longrave à W.A.Colcard, 10 de dezembro de 1929)