Estes artigos foram traduzidos para o português, a partir do livro em francês “Lire Ellen White”, por Ruth Mª C. Alencar. Título do original em inglês, Reading Ellen White: How to Understand and Apply Her Writings (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1997, escrito pelo pastor George Knigh
No capítulo precedente, observamos que Ellen White não reivindicou a inspiração verbal para seus escritos ou para a Bíblia e que ela muito menos os classificou como inerrantes ou infalíveis, no sentido de que eles seriam isentos de erros fatuais.
Apesar de todos os esforços de Ellen White e de seu filho para mudar o pensamento das pessoas com ponto de vista muito rígido sobre a inspiração, muitos perseveraram nesta linha de pensamento. O presente capítulo é uma extensão do precedente.
Ao longo da história da Igreja adventista, alguns tentaram empregar as obras de Ellen White e a Bíblia com objetivos que Deus não lhes deu. Da mesma forma, pretensões foram imputadas a escritos proféticos que transcendem seu objetivo. Assim, B.L.House aprova um autor citando-o para afirmar que: “Os que a escreveram (a Bíblia) foram conduzidos de maneira infalível a fim de serem preservados de todo erro no estabelecimento dos fatos” históricos e de outras áreas (Analytical Studies in Bible Doctrine, p. 66).
Mais recentemente, um de meus conhecidos escreveu que “todas as afirmações que a Bíblia faz, qualquer que seja o assunto (teologia, história, ciência, cronologia, chifres, etc.) são absolutamente irrecusáveis e dignas de confiança” (Issues in Revelation and Inspiration, p. 63) Alguns afirmam que ocorre o mesmo com os escritos de Ellen White. É por isso que eles utilizam seus escritos para apoiar fatos históricos e de datas. S. N. Haskell escreveu à Ellen White que ele e seus amigos “dariam mais por uma palavra de seus testemunhos do que por todas as histórias que pudessem empilhar daqui a Calcutá” (S.N.Haskell E. G. White, 30 de maio de 1910)
Entretanto, Ellen White nunca pretendeu que o Senhor lhe tinha revelado todos os detalhes históricos de sua obra. Ao contrário, ela disse que teve acesso às mesmas fontes que nos são disponíveis para estabelecer os fatos históricos dos quais ela precisou para preencher os capítulos sobre o conflito entre o bem e o mal através dos tempos, que ela tão bem descreveu no Grande Conflito. No prefácio deste volume ela escreveu: “Em alguns casos em que algum historiador agrupou os fatos de tal modo a proporcionar, em breve, uma visão compreensiva do assunto, ou resumiu convenientemente os pormenores, suas palavras foram citadas textualmente; nalguns outros casos, porém, não se nomeou o autor, visto como as transcrições não são feitas com o propósito de citar aquele escritor como autoridade, mas porque sua declaração provê uma apresentação do assunto, pronta e positiva.” Seu objetivo, em livros como o Grande Conflito, “não consiste tanto em apresentar novas verdades concernentes às lutas dos tempos anteriores, como em aduzir fatos e princípios que têm sua relação com os acontecimentos vindouros.” (Grande Conflito 13-14).
Esta declaração de intenção é determinante para a compreensão de sua utilização da história. Ela queria descrever a dinâmica que subentende o conflito entre o bem e o mal através dos séculos. Esta era a sua mensagem. Os fatos históricos no máximo enriqueceram seu quadro. Ela não procurava estabelecer fatos históricos indiscutíveis. Na verdade, como ela o disse, os “fatos” que ela anunciava eram “universalmente conhecidos e admitidos’” pelo mundo protestante (Grande Conflito 13).
Quando alguém colocava em questão a autenticidade dos fatos que ela mencionava, ela não hesitava em mudá-los nas novas edições dos seus livros. Tomemos como exemplo o sino que tinha anunciado o início do massacre das dezenas de milhares de protestantes no dia de São Bartolomeu em 1572. Na edição de 1888 do Grande Conflito (pág. 272) ela menciona que é o sino do palácio do rei Charles IX que tocou primeiro. Mas historiadores reivindicaram que foi na verdade o sino da igreja de Saint-Germain, em frente ao palácio, enquanto outros afirmavam ser o sino do palácio de justiça.
A edição revisada do livro, a de 1911, reformulou a declaração para dizer simplesmente: “Um sino badalando à noite dobres fúnebres, foi o sinal para o morticínio” (Grande Conflito 272). A identidade do sino tocado não era o assunto tratado, os acontecimentos da noite, estes sim eram importantes. Podemos dizer a mesma coisa para as outras mudanças fatuais efetuadas na revisão de 1911.
O que é verdade para o emprego de elementos da história da Igreja é também para sua redação sobre a época bíblica. Ela escreveu a seu filho para pedir “à Mary (esposa de Willie) de encontrar histórias bíblicas que pudessem estabelecer a ordem dos acontecimentos. Eu não consegui encontrar nada na biblioteca daqui, diz ela.” (E.G.White à W. C. White et J. Edson White, 22 de dezembro de 1885.)
Willie White disse à Haskell: “Quanto aos escritos de minha mãe e seu uso como autoridade sobre pontos de História e cronologia, Mamãe nunca desejou que nossos irmãos os considerassem como autoridade no tocante a pormenores da História ou de datas históricas. Quando O Grande Conflito foi escrito pela primeira vez, ela deu uma visão parcial de algumas cenas, e quando irmã Davis (sua assistente redatora) lhe interrogou sobre a época e as circunstâncias, minha mãe lhe enviava ao que já estava escrito no livro do irmão Smith e nos livros de história. “Quando foi escrito O Grande Conflito, Mamãe não imaginava que os leitores o considerariam uma autoridade em datas históricas ou o usariam para resolver controvérsias acerca de pormenores da História, e ela não acha agora que ele deve ser usado dessa maneira. Mamãe encara com grande respeito a obra dos fiéis historiadores que dedicaram anos de tempo ao estudo do grande plano de Deus, segundo é apresentado na profecia, e da realização desse plano, segundo é registrada na História.” (W.C.White à S.N. Haskell, 31 de outubro 1912; cf. Mensagens Escolhidas vol. 3, pág. 446-447)
Na mesma carta, Willie advertiu Haskell: “Há o perigo de ofender o trabalho de minha mãe ao lhe atribuir mais do que ela jamais tenha pretendido.” E, como vimos no capítulo 17, após irmã White ter lido esta carta escreveu:” Aprovo as observações feitas nesta carta” e ela a assinou com seu próprio nome. (Ibidem)
Vinte anos mais tarde, Willie White declarou que “em nossas conversas com ela (Ellen White) a propósito da fidelidade e da exatidão do que ela citou dos historiadores, ela expressou sua confiança neles, mas que nunca havia dado seu consentimento à maneira como alguns têm feito dos seus escritos uma norma e têm tentado, por suas maneiras de empregá-los, de provar o peso de um historiador em relação ao outro. A impressão que tenho é que o objetivo principal das citações extraídas da história não era o de escrever uma nova história, nem de corrigir os erros históricos, mas de empregar ilustrações fundamentadas para estabelecer verdades espirituais. Se nossos irmãos fizerem tudo o que poderem para extrair dos escritos da irmã White o que ela tanto se esforçou para evidenciar, se eles abandonarem sua maneira de empregá-los para argumentar, nós seremos todos abençoados.” (W.C. White à L.E.Froom, 18 fevereiro 1932.)
Não devemos somente evitar empregar Ellen White para “provar” os detalhes da história, mas a mesma precaução deve ser tomada com relação aos fatos científicos. Dizendo isto, não quero deixar entender que não há muita exatidão nas alusões científicas de Ellen White (e da Bíblia), mas compreendo que não devemos procurar provar este ou aquele detalhe científico por esse meio.
Permita-me uma ilustração. Alguns dizem que João Calvino, o grande reformador do século 16, se opôs à descoberta de Copérnico que dizia que a terra girar ao redor do sol, citando Salmo 93:1: “Firmou o mundo, que não vacila.” Do mesmo jeito, um bom número ressaltou que a Bíblia fala dos quatro cantos da terra e que o sol “sobe” e “desce”. Em tais casos a Bíblia faz comentários secundários, mas não estabelece doutrinas científicas.
Tomando outra ilustração, imagine a dificuldade na qual nos colocaríamos se tentássemos empregar a Bíblia para “provar” nos termos do século 20, que os coelhos ou lebres “ruminam” (Deuteronômio 14:7). A.W. Colcord tem razão quando escreve que “a história natural (a ciência) nos permite compreender que a lebre não rumina, mas mexe simplesmente sua mandíbula à maneira de um ruminante.” (W.A. Colcord à B.F. Purdham, 6 julho de 1982)
Encontramos um outro exemplo no livro Educação de Ellen White. É dito que as estrelas refletem a luz do sol, como a lua. Antes de ver isto como uma nova descoberta científica ou ainda um profundo erro científico, penso que deveríamos considerar a coisa como uma observação (em primeiro lugar) que ela emprega para ilustrar um ponto específico.
Consideremos a situação em seu contexto: “O mundo tem seus grandes ensinadores, homens de poderoso intelecto e vasta capacidade de pesquisa, pessoas cujas palavras têm estimulado o pensamento e revelado extensos campos ao saber; tais indivíduos têm sido honrados como guias e benfeitores do gênero humano; há, porém, Alguém que Se acha acima deles. Podemos delinear a série dos ensinadores do mundo, no passado, até ao ponto a que atingem os registros da História; a Luz, porém, existiu antes deles. Assim como a Lua e as estrelas do nosso sistema planetário resplandecem pela luz refletida do Sol, assim também os grandes pensadores do mundo, tanto quanto são verdadeiros os seus ensinos, refletem os raios do Sol da Justiça. Cada raio de pensamento, cada lampejo do intelecto, procede da Luz do mundo.” (Educação página 13-14)
Sua finalidade não é somente clara, é também válida: Deus é a fonte suprema de toda verdade. Lembremo-nos primeiramente do que está no centro do ensinamento dos profetas ao invés do que é secundário (veja capítulo 7). Uma última ilustração extraída da experiência de Ellen White deveria nos ajudar a ser mais prudentes quando procuramos provar certos detalhes científicos a partir de seus escritos. Joseph Bates, co-fundador da Igreja adventista, com James e Ellen White, teve muito cedo dúvidas com relação à autenticidade do ministério profético de Ellen.
Ele mudou de opinião depois de uma visão que ela teve em Topsham (Maine), em novembro de 1846. Nesta ocasião, ela deu informações astronômicas que ela não conhecia antes. Bates, marinheiro antigo e bem informado sobre astronomia, lhe perguntou sobre seus conhecimentos neste domínio. Descobrindo sua ignorância, ele chegou à conclusão que Deus lhe tinha revelado em visão os fatos astronômicos mais atuais. Após esta experiência, ele depositou toda sua confiança no ministério de Ellen White.
O que quero dizer aqui, é que a informação dada na visão não trazia a última palavra sobre o número de satélites girando ao redor dos planetas, como Bates pensava. Ela estava relacionada com o número de corpos celestes, visíveis através de um telescópio em 1846. Os telescópios modernos mais possantes têm revelado outros satélites girando ao redor dos planetas os quais Bates ignorava a existência. Se Ellen White tivesse visto o que nossos potentes telescópios revelam agora, o que ela tivesse dito teria confirmado as dúvidas de Bates ao invés de dissipá-las. A visão estava em acordo com os elementos conhecidos na época como fatos científicos. È evidente que a intenção de Deus, através desta experiência, era estabelecer a confiança de Bates nas visões. Seria uma loucura querer provar de maneira absoluta o número de satélites girando em torno dos planetas a partir de tal fato.
Lembremo-nos que a Bíblia e os escritos de Ellen White não são enciclopédias divinas contendo fatos científicos e históricos. Eles revelam primeiramente a situação desesperada da humanidade e orientam em direção à salvação em Jesus Cristo. Assim sendo, a Revelação de Deus estabelece um esquema por meio do qual podemos compreender o sentido dos elementos do conhecimento histórico e científico obtido por outros meios de estudo.