A Superioridade da Promessa: Gálatas 3:15-20 – por Matheus Cardoso

Os oponentes de Paulo acreditavam que a lei fosse uma espécie de programa para obter a salvação. Ao obedecer à lei de Deus, a pessoa seria justificada – isto é, teria o perdão dos pecados, seria aceita por Deus e passaria a fazer parte de Seu povo.

Em Gálatas 3, Paulo argumenta que o único meio de se alcançar a justificação é pela fé em Cristo. Abraão foi justificado por meio da fé, e não da obediência à lei (Gálatas 3:6), e o mesmo acontece conosco (v. 7-9). A condição para se tornar “filho de Abraão” (v. 7) e receber a bênção de salvação prometida a ele (v. 14) é ter a mesma fé que Abraão teve.

Gálatas 3 (assim como Romanos 4, por exemplo) deixa muito “muito claro que a Lei não representa um novo sistema de salvação, não é uma nova maneira proposta por Deus para salvar o ser humano. A salvação sempre foi e será pela graça e pela fé. Como já dissemos, é um grande equívoco pensar que a salvação no Antigo Testamento era pela Lei e no Novo Testamento é pela fé. A salvação nunca foi pela Lei, mas, sim, pela promessa, pela fé”.[1]

Quando começamos a entender o evangelho – a gloriosa verdade de que somos salvos pela graça de Deus revelada na cruz, e não por nossos méritos ou obediência –, a pergunta mais natural diz respeito à necessidade da obediência.

“Se estamos ‘livres da lei’, quer dizer que não temos de obedecer à lei de Deus?

Se sou sempre salvo só pela atuação de Cristo e não pela minha, por que deveria lutar para levar uma vida santa? Tenho alguma obrigação de guardar a lei de Deus? Por quê?

“Na verdade, não há questão mais prática do que essa do relacionamento do cristão com a lei de Deus. As outras dúvidas que temos sobre como viver – Como devo tratar meu cônjuge? Em que devo gastar meu dinheiro? Que arestas posso aparar no meu emprego? – são originárias da indagação principal: Como cristão, qual o meu relacionamento com a lei de Deus?”[2]

Essas são algumas das questões que iniciaremos a tratar neste estudo e continuaremos nos próximos.

A promessa é superior à lei

Em Gálatas 3:15-18, Paulo mostra que a aliança feita por Deus com Abraão não pôde ser alterada (Gálatas 3:15, 17). Para provar isso, ele argumenta que mesmo as alianças entre seres humanos não podem ser quebradas (veja Gênesis 31:44, 45; 1Samuel 20:8; 2Samuel 3:12). Quanto mais uma aliança feita pelo próprio Deus! Se Deus prometeu que, por meio de Abraão, as pessoas seriam justificadas pela fé (Gálatas 3:8- 9), essa condição nunca poderia ser mudada. A “herança” da salvação eterna (veja Romanos 4:13) foi concedida a Abraão “gratuitamente” (Gálatas 3:18), e não por algo que ele tivesse feito.

O argumento de Paulo é que a promessa feita a Abraão é superior à lei por três razões:

1. A promessa foi feita muito tempo (430 anos) antes que a lei fosse proclamada no Sinai (Gálatas 3:17). Essa promessa é uma aliança, e, portanto, não pode ser alterada. Nada que viesse depois dela poderia mudar ou acrescentar algo nas condições para a sua realização (v. 15).

2. A lei não foi dada no Sinai com o objetivo de ser um meio de justificação, mas “por causa das transgressões” dos israelitas (v. 19). Essa razão será analisada neste e no próximo estudo.

3. Ao fazer a promessa, Deus falou diretamente a Abraão. Mas, ao  Deus o fez por intermediários (v. 19-20): Moisés (Deuteronômio 5:5) e os anjos (Atos 7:38; Hebreus 2:2).

“O argumento é poderoso. Se a lei de Moisés veio como Ele teria decidido que não precisamos de um Salvador e que passaria a dar sua bênção com base em desempenho, não em promessa. […]

“O princípio é que os próprios conceitos de “promessa” e “lei” são mutuamente excludentes. Se lhe dou algo devido ao que prometi, não é em razão do seu desempenho. Se lhe dou algo devido ao que você fez, não é por causa da minha promessa. Paulo é inflexível: ou algo vem pela graça ou pelas obras; ou algo vem em razão da promessa do doador ou por causa do desempenho do receptor. Tem de ser de um jeito ou do outro.

“Vale a pena refletir sobre isso. Para a promessa gerar resultado, ela só precisa ser objeto de fé; mas, para a lei gerar resultado, deve ser obedecida. Por exemplo, se eu lhe disser: Meu tio Jack quer conhecê-lo e lhe dar 10 milhões de dólares, o único modo de você não receber os 10 milhões de dólares é deixando de acreditar nessa afirmação. Se você apenas rir e voltar para casa, em vez de ir à casa do tio Jack lhe fazer uma visita, você talvez nunca ponha as mãos no dinheiro. Mas, se eu lhe disser: Meu tio Jack está disposto a lhe deixar sua herança de 10 milhões de dólares, mas você tem de ir morar com ele e cuidar dele em sua idade avançada, então você precisará cumprir os requisitos e condições, se quiser ficar com o dinheiro.”[3]

“Por que, então, a lei?”

A questão é óbvia: “Por que, então, a lei?” (Gálatas 3:19, Bíblia de Jerusalém). Se a lei não era uma condição adicional para que as pessoas alcançassem a promessa de salvação feita a Abraão, por que a lei foi proclamada no Sinai?

Paulo responde que a lei “foi acrescentada por causa das transgressões, até que viesse o Descendente [Cristo] a quem se referia a promessa” (NVI). À primeira vista, Paulo está dizendo que a lei surgiu no tempo de Moisés (“foi acrescentada”) e existiu somente até a primeira vinda de Cristo (“até que”). Seria esse o sentido do texto?

Estudiosos dizem que “Gálatas 3:19-25 é o ponto central da resposta de Paulo aos problemas na Galácia”.[4] Portanto, em certo sentido, é o texto mais importante para entender a carta aos gálatas. Estudaremos esses versículos nesta e na próxima semana.

1. A lei foi “acrescentada” no Sinai

Paulo diz que a lei veio 430 anos após a promessa feita por Deus a Abraão (v. 17) e que ela foi “acrescentada” no tempo de Moisés (v. 19). O que ele quis dizer com isso? A lei já não  existia antes de ser proclamada no Sinai?

Como adventistas, enfatizamos que a lei é eterna como Deus, porque é a transcrição de Seu caráter. Isso está correto, de outra forma o pecado não teria existido antes de Moisés (Romanos 5:12; 2Pedro 2:4), porque “pecado é a transgressão da lei” (1João  3:4; veja Romanos 4:15). Abraão, por exemplo, já guardava a lei de Deus (Gênesis 17:1, 9; 18:19; 25:6). O livro de Gênesis mostra que os mandamentos que se tornariam parte do Decálogo já existiam e deveriam ser obedecidos pelo povo de Deus (veja, por exemplo, Gênesis 2:1-3; 4:3-16; 9:20-27; 26:9; 27:11-12; 34:2, 26; 35:1-4; 39:9).

Antes de ser proclamada no Sinai, a lei de Deus existia de forma oral e assim era passada de geração a geração. Somente no tempo de Moisés a lei passou a existir de forma escrita. Logo entenderemos por que ocorreu essa mudança no formato da lei.

A lei, portanto, já existia como revelação da vontade de Deus. Então, em que sentido a lei foi “acrescentada” no Sinai? Vejamos o que o apóstolo diz a seguir:

2. A lei foi “acrescentada por causa das transgressões”

Os israelitas haviam passado algum tempo no Egito. Lá, tiveram contato com o paganismo grosseiro e generalizado, além de experimentarem uma escravidão bárbara e cruel. Tudo isso eliminou quase que completamente a sensibilidade espiritual do povo, levando-o a uma apostasia profunda e indescritível.

A tradição judaica destaca uma grande ironia ocorrida no Monte Sinai: imediatamente depois que a lei foi proclamada (Êxodo 20) e enquanto Moisés esteve no Sinai (Êxodo 21-31), os israelitas já estavam transgredindo os primeiros mandamentos da lei (Êxodo 32). Eles construíram um bezerro de ouro, entregando-se à idolatria, imoralidade e orgia. Os israelitas ainda não estavam totalmente livres da apostasia que haviam experimentado no Egito.

Os oponentes de Paulo acreditavam que o propósito da lei era justificar, ou seja, trazer o livramento da condenação pelo pecado. Mas, em Gálatas 3:19, Paulo explicou que a lei não tinha o objetivo de mudar nada do que Deus havia dito a Abraão. Ela foi “acrescentada por causa das transgressões” dos israelitas.

Ou seja, a lei foi dada de forma escrita (em tábuas de pedra) e em meio à terrível solenidade do Sinai por causa da apostasia do povo no Egito. O propósito da lei era mostrar com suficiente clareza a gravidade do estado pecaminoso dos israelitas e fazê-los ansiar pela vinda do Salvador prometido.

“A lei não veio nos falar sobre salvação, mas sobre pecado. Seu principal propósito é mostrar-nos nosso problema – somos infratores da lei – e provar que não podemos ser a solução, visto que somos incapazes de ser perfeitos cumpridores da lei.”[5]

O apóstolo Paulo “nunca pretendera declarar a lei desnecessária, pois sabia que a lei desempenhava um papel essencial no propósito de Deus. A função da lei não era, todavia, conceder salvação, mas, sim, convencer os homens da necessidade desta. Citando Andrew Jukes, ‘Satanás gostaria que provássemos que somos santos através da lei, a qual Deus deu para provar que somos pecadores”. [6]

Muitos cristãos imaginam que precisamos apenas falar sobre o amor de Deus e Sua vontade, mas evitar mencionar a gravidade do pecado. Porém, só podemos dar valor suficiente ao remédio quando percebemos a seriedade da doença. Quando uma pessoa está com uma doença grave, como o câncer, fará todo o possível para ser curada.

Antes de apresentar as boas-novas da salvação em Jesus, Paulo sempre enfatizava quão terrível é o pecado (Romanos 1-3; Gálatas 3:10-14, 19-25). De acordo com a Bíblia, o pecado não se limita a meros atos ou pensamentos. Ele é um poder que faz parte da natureza humana e todos nascemos com ele (Salmo 51:5; Romanos 7:14-25; 8:3; Efésios 2:3). Todos são escravizados por esse poder, e não podem se livrar dele por si mesmos.

“Uma vaga percepção do fato de que nem tudo vai bem com o homem não o impelirá ao Salvador. Somente quando compreende que seus pecados são transgressões da lei dAquele que também é o seu Juiz (Jeremias 11:20) e cuja santidade não pode tolerar um único pecado sequer (Habacuque 1:13), é que ele, ao ser esse conhecimento aplicado ao seu coração pelo Espírito Santo (João 16:8), clamará por livramento. E era exatamente isso o que Deus esperava que acontecesse” com os israelitas no Monte Sinai.[7]

Augustus Nicodemus comenta: “A Lei foi dada, portanto, para evidenciar e caracterizar ainda mais o pecado, a fim de que as pessoas vissem mais claramente por que elas precisam do descendente de Abraão que viria. Em razão de suas transgressões constantes, elas poderiam perceber que necessitavam totalmente de um Salvador. A Lei tinha, assim, um objetivo didático. Observe que ela foi ‘acrescentada’ apenas para evidenciar a transgressão, não para salvar. Veio para diagnosticar a doença do pecado, não para servir de remédio.

“Vamos a um exemplo. Certo dia, um de meus filhos estava sentindo dores no peito; então, o levamos ao hospital. O médico que o atendeu solicitou uma radiografia, e, por meio dela, descobrimos que meu filho tinha um pequeno problema no pulmão. Com isso soubemos o que estava causando aquelas dores, e ele pôde receber o tratamento adequado. Mas imagine se o médico dissesse após o diagnóstico: ‘Ferva esta chapa da radiografia na água e faça um chá com ela.

Então, é só beber que o paciente ficará curado.’ Seria uma grande tolice uma prescrição como essa, não é? Pois era exatamente o que os judeus estavam fazendo. A Lei funciona como uma espécie de radiografia da alma, que oferece uma imagem clara de nosso coração ao apontar em que estamos errando, quais são exatamente os nossos pecados. Usar a Lei como solução para esses pecados é a mesma coisa que tomar um chá da radiografia que detectou o problema no pulmão. A Lei não foi dada para curar nem para salvar; foi acrescentada para mostrar que o ser humano está doente, que é um pecador e precisa da cura que só Deus pode proporcionar.”[8]

3. A lei foi “acrescentada […] até que viesse o Descendente”

Muitos cristãos acreditam que a lei de Deus foi abolida na cruz. Como ainda veremos ao longo deste estudo, a lei não pode ser abolida, e existem razões bíblicas para pensar assim. De acordo com Paulo, porém, alguma coisa aconteceu com a lei quando Cristo veio. Isso é o que veremos no próximo estudo. Essa parte de Gálatas 3:19 pode ser mais bem entendida quando estudada com os versículos 21-25.

Resumo: A proclamação da lei no Sinai não anulou a promessa que Deus fez a Abraão. O objetivo da lei não era acrescentar condições para que a promessa fosse cumprida. A condição continuou a ser apenas a fé. A lei foi dada de forma escrita e em meio à terrível solenidade do Sinai por causa da apostasia dos israelitas no Egito. Os oponentes de Paulo acreditavam que o propósito da lei era justificar, ou seja, trazer o livramento da condenação pelo pecado. Paulo explicou que o propósito da lei era mostrar com suficiente clareza a gravidade do estado pecaminoso dos israelitas – e de toda a humanidade – e fazê-los ansiar pela vinda do Salvador prometido.

Perguntas para reflexão e aplicação

1. Quais seriam as consequências se Paulo estivesse dizendo que a fé anula a necessidade de guardar a lei de Deus? Por exemplo, o adultério, o roubo ou até mesmo o assassinato deixariam de ser pecado? Pense na tristeza, dor e sofrimento dos quais você poderia se poupar se simplesmente obedecesse à lei de Deus. Quais sofrimentos você ou outras pessoas têm experimentado, como resultado da desobediência à lei de Deus?

2. Por que as pessoas precisam saber que Deus tem leis antes que consigam entender por que a morte de Jesus é uma boa notícia?[9]

3. Pense em alguns dos encontros de Deus com personagens bíblicos: Adão e Eva no Éden (Gênesis 3); a escada de Jacó (Gênesis 28); os israelitas na encosta do monte Sinai (Êxodo 19) e Paulo no caminho de Damasco (Atos 9). Ainda que você não tenha experimentado algo assim tão dramático, de que forma Deus tem Se revelado a você? Alguma coisa na sua vida tem impedido que você tenha a intimidade e proximidade com Deus que Abraão experimentou? O que você pode fazer para mudar essa situação?

4. Quando você se sente mais tentado a olhar para os próprios esforços para se fazer aceitável a Deus?

5. Para ajudá-lo a diagnosticar seu próprio coração, pergunte a si mesmo: O que me faz sentir desespero na vida? O que me leva a sentir orgulho de mim mesmo?[10]

Referências

1. Augustus Nicodemus Lopes, Livres em Cristo: A mensagem de Gálatas para a igreja de hoje (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 182-183 (grifo nosso).

2. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 80 (grifo no original).

3. Ibid., p. 81-82 (grifo no original).

4. Richard N. Longenecker, Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41 (Dallas, TX: Thomas Nelson, 1990), p. 137.

5. Keller, Gálatas Para Você, p. 85.

6. John R. W. Stott, A Mensagem de Gálatas: Somente um caminho (São Paulo: ABU, 1989), p. 83.

7. Wilson Paroschi, Só Jesus: Porque em nenhum outro há salvação (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1997), p. 75.

8. Lopes, Livres em Cristo, p. 184-185.

9. A pergunta 2 foi extraída de Timothy Keller, Gálatas: O valor inestimável do evangelho, Série Estudando a Palavra (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 35.

10. As perguntas 4 e 5 foram extraídas de Keller, Gálatas Para Você,

Você pode ver o estudo completo de Gálatas aqui

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