Fé e Antigo Testamento – Gálatas 3:1-14 – por Matheus Cardoso

Paulo ensinava que o meio para sermos salvos é apenas a fé em Cristo, e não nossa obediência à lei. A obediência é o resultado da salvação já obtida. Em poucas palavras, esse era o evangelho proclamado por Paulo. Em Gálatas 1 e 2, o apóstolo argumenta que essa compreensão lhe foi revelada diretamente por Cristo (Gálatas 1:11-24) e tinha a completa aprovação dos líderes da igreja (2:1-10). Em Gálatas 3 e 4, Paulo apresenta uma defesa bíblica e teológica do verdadeiro evangelho.

“Na segunda metade do capítulo 2 [de Gálatas], Paulo demonstrou que somos salvos quando paramos de confiar em nossos esforços morais ou na lei (morremos para ela) e confiamos na obra de Cristo, que cria uma motivação inteiramente nova para tudo que fazemos (vivemos para Deus). O evangelho é o caminho de entrada no reino de Deus. Mas agora Paulo mostrará que o evangelho é muito mais do que isso. Não só somos salvos pelo evangelho, mas também crescemos pelo evangelho. Paulo está dizendo que não começamos pela fé para depois prosseguir em nosso crescimento por meio das obras. Não apenas somos justificados pela fé em Cristo, somos também santificados por ela. Nunca deixamos o evangelho para trás.”1

A experiência dos gálatas (Gálatas 3:1-5)

O primeiro argumento apresentado por Paulo vem da realidade prática da igreja. O apóstolo recorre a verdades que os gálatas conheciam por experiência própria. Ele havia pregado o evangelho de maneira tão viva que eles haviam sido capazes de “enxergar” a cruz de Cristo (Gálatas 3:1).

Paulo, então, faz uma série de perguntas retóricas (versos 2-5). A conclusão dos gálatas seria inevitável: eles já haviam recebido a justificação, e isso havia ocorrido somente pela fé. Como prova dessa justificação, Deus lhes havia concedido o Espírito Santo (versos 2-3) e realizado milagres entre eles (verso 5).

“Havia uma mensagem a transmitir: ‘Jesus Cristo […] crucificado” (veja 1Coríntios 2.1-5). Observe que a essência da mensagem não é como viver, mas o que Jesus fez na cruz por nós. O evangelho é mais um anúncio de acontecimentos históricos do que instruções sobre como viver. É a proclamação do que foi feito em nosso favor mais do que uma orientação do que devemos fazer.”2

A experiência de Abraão (Gálatas 3:6-9)

Em Gálatas 3:6 – 4:31, Paulo apresenta argumentos retirados do Antigo Testamento para mostrar que a salvação é apenas pela fé. Isso pode ser surpreendente para muitos cristãos. Se o Antigo Testamento tivesse sido abolido, como muitos ensinam, por que Paulo o usaria como base de sua argumentação? E se, durante a época do Antigo Testamento, as pessoas houvessem sido salvas por meio da obediência à lei, como Paulo poderia citar textos dessa parte da Bíblia que ensinam a salvação pela fé somente?

Paulo cita um texto do Antigo Testamento (Gênesis 15:6) que afirma que Abraão foi justificado apenas pela fé (Gálatas 3:6). Esse personagem bíblico era considerado pai do povo de Israel e modelo de verdadeiro judeu. O raciocínio do apóstolo é brilhante: se Abraão foi justificado somente pela fé, então nada diferente poderia ser exigido daqueles que desejam alcançar a mesma bênção (versos 7, 9).

Em seguida, Paulo faz uma declaração ainda mais surpreendente: “Tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão” (verso 8). O evangelho não começou a ser proclamado no tempo de Jesus e dos apóstolos. Não foi uma inovação de Paulo. Ele já fora pregado a Abraão! A razão disso é que existe apenas um evangelho (Gálatas 1:6-7), o mesmo que foi pregado aos israelitas no tempo de Moisés (Hebreus 4:2) e, antes dele, a Adão e Eva (Gênesis 3:15) – esse é o “evangelho eterno” (Apocalipse 14:6).

Libertados da condenação da lei (Gálatas 3:10-14)

Chegamos agora a um texto fundamental da carta: Gálatas 3:10-14. “Praticamente todos os estudiosos concordam que esse trecho é um dos mais importantes de Gálatas.”3 Como veremos, ele fornece a chave para entender as declarações aparentemente negativas de Paulo sobre a lei.

 O versículo 10 afirma: “Já os que se apoiam na prática da lei estão debaixo de maldição, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da lei’” (NVI). Ao defenderem a permanência da lei moral de Deus (os Dez Mandamentos), algumas pessoas imaginam que, nesse texto, Paulo estava criticando os cristãos que guardavam as leis cerimoniais. Nesse caso, o sentido do versículo seria este: “Maldito é todo aquele que guarda as leis cerimoniais, porque não percebem que Cristo já aboliu essas leis.”

Mas o texto não critica quem guarda a lei. Ele ensina exatamente o oposto: “Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da lei.” Portanto, maldito é quem não guarda a lei! Note que, desde o início de sua argumentação, Paulo exalta a obediência à lei, e não o desprezo a ela.

A seguir, estudaremos alguns pontos importantes de Gálatas 3:10-14.

1. Maldição para quem guarda a lei?

Então, se Paulo condena quem não guarda a lei, como entender a primeira parte do versículo? “Já os que se apoiam na prática da lei estão debaixo de maldição, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da lei’” (Gálatas 3:10). À primeira vista, Paulo critica quem guarda a lei e, para provar sua ideia, cita uma passagem que critica quem não guarda a lei! Estaria Paulo se contradizendo? O raciocínio do apóstolo é o seguinte:4

1. Aqueles que não guardam todos os mandamentos da lei, perfeitamente e o tempo todo, estão debaixo da condenação da lei (“Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da lei”).

2. Ninguém (exceto Jesus) jamais guardou toda a lei perfeitamente e em todo o tempo (Romanos 1–3).

3. Portanto, visto que não obedecem a lei perfeitamente e o tempo todo, aqueles que tentam guardá-la para ser justificados estão debaixo da condenação da lei, tanto quanto os demais transgressores (“os que se apoiam na prática da lei estão debaixo de maldição”).

Os oponentes de Paulo acreditavam que uma pessoa pode ser salva por meio de sua obediência à lei de Deus. Em outras palavras, eles se apoiavam “na prática da lei”. Diante disso, o apóstolo lembra que a lei exige obediência perfeita, mas seus próprios oponentes sabiam que ninguém obedece perfeitamente à lei (Gálatas 5:3; 6:13). Portanto, a justificação não pode ser por meio da obediência.

Note o jogo de palavras usado por Paulo. O legalismo é uma grande ironia: aqueles que tentam guardar a lei para receber a bênção prometida a Abraão (a salvação), recebem, em vez disso, a maldição da lei. Os únicos que recebem a bênção da salvação são aqueles que têm fé em Cristo (Gálatas 3:13).

2. O que é a “maldição da lei”? Em que exatamente consiste essa maldição? Não existe nenhum problema na lei, mas no ser humano (Romanos 7:7, 13; 8:3). Todas as pessoas são pecadoras (Romanos 3:23) e merecem o salário do pecado: a morte eterna (Romanos 6:23; Efésios2:3). Tudo o que a lei pode oferecer aos transgressores é a condenação pela desobediência. Essa é a “maldição da lei” (Gálatas 3:13).

A única forma de se livrar dessa condenação compartilhada por todos os seres humanos é aceitar a Cristo pela fé. Em Sua morte, Ele sofreu a condenação que pertencia a nós (Gálatas 3:13).

“Teologicamente, qualquer um que diz: Posso ser salvo obedecendo à lei deve estar prepara- do para investigar de verdade o que a lei ordena. Para amar a Deus por completo, teríamos de obedecer à lei por completo. Para sermos abençoados em vez de amaldiçoados por Deus, teríamos de analisar a lei e satisfazer todas as suas exigências. E isso não pode ser feito. Objetivamente, buscar a salvação pela observância da lei significa ser amaldiçoado.

“Isso quer dizer que, em termos psicológicos, todo aquele que procurar salvar-se por meio do próprio desempenho experimentará uma maldição em termos subjetivos. No mínimo, a tentativa de se salvar pelas obras conduzirá a profunda ansiedade e insegurança, porque nunca se pode ter certeza de estar vivendo suficientemente à altura dos padrões da lei, quaisquer que sejam. Isso deixa você supersensível à crítica, intimidado e com inveja de quem o ofusca. Você fica nervoso e receoso (por não saber bem em que posição se encontra), ou então vaidoso e se gabando (por tentar se convencer da própria posição). De um jeito ou de outro, você vive com a sensação de maldição e condenação.”5

“Debaixo de”

Gálatas 3:10 e 13 fornece uma importante chave para se compreender as declarações aparentemente negativas de Paulo sobre a lei. Segundo esse texto, “os que se apoiam na prática da lei estão debaixo de maldição” (v. 10), isto é, a “maldição da lei” (v. 13). Essa é a primeira das seis expressões em Gálatas que começam com as palavras “debaixo de”. Confira a lista completa:

· “debaixo de maldição” (3:10);

· “debaixo do pecado” (3:22);

· debaixo da “lei” (3:23; 4:4, 5, 21; 5:18);

· debaixo de “tutor” (3:25);

· debaixo de “guardiães e administradores” (4:2);

· debaixo dos “princípios elementares do mundo” (4:3).

Nesses textos, Paulo argumenta que, a partir da morte de Cristo, não mais estamos “debaixo de maldição”, debaixo da “lei”, debaixo de “tutor” etc. Todas essas expressões são paralelas; apresentam a mesma ideia.

Para muitos, estar “debaixo da lei” significa submeter-se à autoridade da lei e obedecê-la. Portanto, eles concluem que, depois da cruz, não mais precisamos guardar a lei. Mas quando estudamos a lista acima, percebemos o que realmente significa estar “debaixo da lei”: É o mesmo que estar debaixo da “maldição da lei” e “debaixo do pecado”. Em outras palavras, quem está “debaixo da lei” é quem desobedece à lei, e não quem a obedece!

Isso se torna ainda mais claro quando comparamos dois textos importantes que apresentam a mesma ideia:

· “Deus enviou Seu Filho, […] nascido debaixo da lei, a fim de redimir os que estavam sob a lei” (Gálatas 4:4, 5).

· “Cristo nos redimiu da maldição da lei quando Se tornou maldição em nosso lugar” (Gálatas 3:13).

Cristo ter nascido “debaixo da lei” é o mesmo que ter Se tornado “maldição em nosso lugar”. E Cristo “redimir os que estavam sob a lei” é o mesmo que nos redimir “da maldição da lei”.

Essa é uma importante chave para se entender os textos difíceis de Paulo a respeito da lei. Sempre que o apóstolo dizia que não mais estamos “debaixo da lei”, ele estava ensinando que Cristo nos livrou da condenação da lei, que é a morte eterna. É por isso que, em Romanos 6:14, Paulo declara que não estar mais “debaixo da lei” significa estar “debaixo da graça”. Ou seja, estar debaixo da graça (ou estar salvo) significa não mais estar debaixo da condenação da lei.

Mas além desses textos negativos sobre a lei, Paulo escreveu muitos textos positivos sobre ela. Os textos negativos falam sobre a condenação da lei, da qual Jesus nos livrou por Sua morte. Já os textos positivos falam sobre a obediência à lei na vida do cristão.

Note que, em Romanos 6:15, Paulo faz questão de esclarecer que aqueles que estão salvos (isto é, que estão debaixo da graça e não mais debaixo da lei) não estão de forma alguma livres para pecar. Ou seja, a salvação não nos isenta da obediência à lei, visto que pecado é precisamente a transgressão da lei (1 João 3:4). Estar debaixo da graça significa, sim, tornar-se servo de Cristo para a obediência e para a justiça (Romanos 6:16-18).

Em outras palavras, o resultado do sacrifício de Cristo é que podemos, e devemos, viver em harmonia com a lei (Romanos 8:3, 4). Sua morte nos livrou da condenação da lei (Gálatas 3:13) e Deus enviou o Espírito Santo para que pudéssemos obedecê-la (v. 14; 5:18; Hebreus 10:15, 16). Por meio da graça de Deus, o cristão é habilitado a cumprir “toda a lei” (Gálatas 5:14; cf. Romanos 13:8-10).

“Por que é tão importante entender isso? Porque revela a maravilhosa afirmação relacionada com o que nos acontece quando cremos. Se Jesus ‘se tornou’ um pecador por nós, então nós, da mesma forma, nos tornamos justos. Se o fato de ele tomar para si a maldição significa que foi considerado por Deus como um pecador, então o fato de recebermos a bênção significa que somos considerados por Deus perfeitamente justos e sem defeito.”6

Resumo

Paulo argumenta que os próprios gálatas, bem como Abraão, haviam alcançado a justificação pela fé somente. O Antigo Testamento como um todo apresenta essa verdade. Aqueles que tentam ser salvos por meio de uma combinação de fé e obras recebem apenas a condenação da lei. A razão disso é que a lei exige perfeita obediência e ninguém é capaz de oferecer isso. Como todos são transgressores da lei, todos merecem o salário do pecado: a morte eterna. Apenas a morte de Cristo nos livra da condenação que a lei impõe aos transgressores e nos capacita a obedecê-la.

Perguntas para reflexão e aplicação

1. Você costuma ter pensamentos como estes: “Estou me saindo muito bem?”, “Sou um bom cristão: não faço isso, não faço aquilo”? Mesmo que de maneira sutil, você pensou que é suficientemente bom para ser salvo? O que há de errado com essa situação?

2. Você corre o risco de esquecer que o evangelho é a fonte da sua contínua aceitação? Como e por quê?

3. Como você “repinta” Cristo para si mesmo? Seria capaz de fazê-lo mais vezes?

4. Pense em um pecado que comete com regularidade. O que você está adorando mais do que Jesus e que o leva a resolver desobedecê-lo? Como substituirá esse salvador falso por seu verdadeiro Salvador, da próxima vez que for tentado?

5. De que maneira o fato de nos ser atribuída justiça muda o modo como vemos a nós mesmos? Ou como vemos nossa vida cristã? Ou como vemos Jesus Cristo?

6. Você já experimentou ou viu outros experimentando a “maldição” psicológica de viver pela lei?

7. Qual verdade em Gálatas 3.13,14 mais o entusiasma hoje?7

Referências

1. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 67 (grifo no original).

2. Ibid.

3. Thomas R. Schreiner, Galatians, Exegetical Commentary on the New Testament, v. 9 (Grand Rapids: Zondervan, 2010), p. 199.

4. Adaptado de Schreiner, Galatians, p. 204; Carl P. Cosaert, Galatians: A Fiery Response to a Struggling Church (Hagerstown: Review and Herald, 2011), p. 53.

5. Keller, Gálatas Para Você, p. 77-78.

6. Ibid., p. 79.

7. As perguntas 1 a 7 foram retiradas de ibid., p. 73, 79.

Você pode ver o estudo completo de Gálatas aqui

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