Justificação pela fé (Gálatas 2:15-21) -(Segunda parte) por Matheus Cardoso

Quando Pedro agiu de forma contrária ao que ele mesmo acreditava (2:11-13), Paulo o repreendeu e o fez recordar-se de sua crença como cristão (v. 14). Em Gálatas 2:15-21, Paulo apresenta as razões que justificam sua dura resposta. Paulo relembrou a Pedro que a justificação é somente pela fé. Ou seja, somos perdoados de nossos pecados, aceitos por Deus e passamos a fazer parte de Seu povo somente pela fé no sacrifício de Cristo, e não por nossa obediência (que é imperfeita) à lei de Deus. Nossa obediência à lei será o resultado da justificação pela fé já obtida.

O que é justificação pela fé?

Em sua resposta a Pedro, Paulo disse que “ninguém é justificado pela prática da lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo” (Gálatas 2:16, NVI).

Mesmo no meio cristão, muitas não entendem o que significa “justificação”. Atualmente, essa é uma expressão teológica rebuscada, desconhecida para a maioria das pessoas.

“Justificação” é uma palavra relacionada ao tribunal. Significa ser absolvido, declarado justo, considerado inocente diante de acusações. Ser justificado é o oposto de ser condenado (Êxodo 23:7; Deuteronômio 25:1; Mateus 12:37).

No contexto bíblico, justificação tem um sentido específico. Todas as pessoas são pecadoras (Romanos 3:23). Tudo o que merecem é o salário do pecado, a morte eterna (Romanos 6:23; Efésios 2:3). Todos são culpados perante a lei de Deus (Romanos 3:19; Gálatas 3:10). No tribunal divino, a sentença de cada ser humano é: “Culpado!”

No entanto, quando cremos em Jesus, somos perdoados de nossos pecados, somos aceitos por Deus e passamos a fazer parte de Seu povo. Isto é, somos justificados. Justificação é o mesmo que ser perdoado dos pecados (Atos 13:38, 39; Romanos 4:6-8) e ser libertado da condenação da lei (Romanos 8:1, 2). O resultado disso – como Paulo tanto enfatizou – é a obediência a toda a lei de Deus (Romanos 3:31; 8:4; 13:8-10; Gálatas 5:14; 6:2).

O que são as “obras da lei”?

Paulo diz que “o homem não é justificado por obras da lei” (Gálatas 2:16). Algumas pessoas acham que isso se refere apenas às leis cerimoniais. Mas, em Gálatas, “lei” é toda a coleção dos mandamentos de Deus dada ao povo de Israel através de Moisés, sejam morais ou cerimoniais. Portanto, até mesmo os Dez Mandamentos estão incluídos.

“Obras da lei” são as obras ou atos que a lei de Deus requer de nós.[1] Em outras palavras, a obediência aos mandamentos da lei, a “prática da lei” (NVI).

Conforme já vimos, o objetivo de Gálatas não é mencionar quais mandamentos do Antigo Testamento não precisam ser obedecidos pelos cristãos. O problema é muito maior do que tentar alcançar a justificação por meio da circuncisão ou de outras leis cerimoniais. É impossível ser justificado pela obediência a qualquer parte da lei – mesmo aos Dez Mandamentos!

Morri para a lei

Escrevendo a respeito de Gálatas 2:16, o pastor Tim Keller comenta:

“Se somos justificados pela fé no que Cristo fez, não somos justificados pelo que fazemos. A observância da lei não é o que salva (v. 16).

“Foi ao que Paulo se referiu quando disse: ‘Pela lei, eu morri para a lei’ (v. 19). Ele não pode estar dizendo que deixamos de obedecer à lei de Deus por completo. Considere todo o restante dos seus escritos. Ele não diz aos cristãos que devemos obedecer à lei? Por exemplo, aos coríntios ele diz que a imoralidade sexual é errada, com base no que Gênesis afirma sobre o casamento (1Coríntios 6.15,16).

“Isso significa que Paulo morreu para a lei como meio de salvação. Morreu para a condenação da lei. Se não somos justificados pela lei, mas por Cristo (Gálatas 2.16), então a lei não pode nos condenar. Se me sinto condenado e temo que Deus não mais ouvirá minhas orações ou não mais se importará comigo, esqueci que estou morto para a lei. Esqueci que ela não pode me fazer mal.

“Como Paulo morreu para a busca da salvação pela observância da lei ‘por meio da lei’? Porque, ao tentar obedecê-la, constatou que não podia fazê-lo. Ele está dizendo: Eu não saberia o que era o pecado, exceto por intermédio da lei. E não descobriria o quanto sou incapaz de guardar a lei, exceto por meio da lei. Por realmente dar ouvidos à lei, Paulo viu que necessitava de um Salvador.”[2]

Falando sobre a mesma passagem, o pastor Augustus Nicodemus diz:

“Paulo aprendeu na própria Lei a respeito do Messias e percebeu que pela Lei se morre para a Lei; ou seja, o apóstolo não vê mais todas as suas ordenanças como o caminho da justificação. Ele não apela mais a elas para ser justificado e por elas também não é mais condenado, porque já não está debaixo delas. A Lei foi perfeitamente cumprida por seu Representante, Cristo; por isso, Paulo está completamente morto para ela.

“Todavia, isso não significa que não devemos seguir os Dez Mandamentos como forma de gratidão a Deus; a ideia principal é que não estamos mais sob a condenação da Lei. Com Cristo, estamos mortos para ela, e, como a Lei só pode condenar os vivos, ela não nos alcança mais. […]

“Nós, que estamos mortos para a Lei, não tentaremos nos justificar diante dela, porque sabemos que ela diz a verdade a nosso respeito: somos de fato seus infratores e merecedores de justa condenação. No entanto, nossa resposta será: ‘Estamos mortos para a Lei. Já cumprimos nossa sentença, porque um Representante foi executado em nosso lugar. Portanto, a Lei não nos alcança mais.’ E, quando no dia do juízo, ela exigir nossa pena de morte, a resposta que daremos será: ‘Essa pena já foi cumprida, pois Cristo foi condenado à morte em nosso lugar.’”[3]

O que não é legalismo?

Uma das grandes ênfases de Paulo, especialmente em Gálatas e Romanos, é que não somos justificados pela obediência à lei. Crer que somos salvos através da lei é o que os cristãos costumam chamar de legalismo. Na teoria, quase todos os cristãos concordariam com essa afirmação, mas, na verdade, o assunto é bem mais profundo e relevante.

É verdade que o legalismo era um dos maiores problemas dos judeus em geral do tempo de Jesus e dos apóstolos (Rm 9:30-10:4). Mas precisamos ser cuidadosos a fim de evitar uma compreensão distorcida a respeito do que é legalismo.

1. Legalismo não é necessariamente obedecer à lei de Deus de modo rigoroso – Na verdade, é impossível ser obediente “demais”. De acordo com Jesus, Seus seguidores não devem ter um padrão de obediência inferior ao dos zelosos fariseus, e sim “muito superior” ao deles (Mateus 5:19, 20). A lei deveria ser obedecida externamente de modo tão rigoroso quanto os fariseus ensinavam (Mateus 23:3), mas, acima disso, Deus pede a obediência interior, vinda do coração transformado por Ele (Deuteronômio 6:5-9; 10:16; 30:6).

Portanto, quem obedece aos mandamentos de forma apenas exterior e mecânica, esquecendo-se da transformação interior, não está guardando a lei de forma nenhuma! (Gálatas 4:21; 6:13; Tiago 2:10). Os legalistas, em vez de se apegarem demais à lei, em realidade se afastam do verdadeiro sentido dela: “a justiça, a misericórdia e a fé” (Mateus 23:23).

Como veremos neste trimestre, Paulo ensinava que o sacrifício de Cristo tornou a obediência à lei ainda mais profunda e significativa. Cristo morreu precisamente para que pudéssemos guardar a lei de acordo com a vontade de Deus (Romanos 8:3-4). Depois da cruz, Deus enviou o Espírito Santo em Sua plenitude, para escrever Sua lei em nosso coração (Hebreus 8:10; 10:16; veja Gálatas 3:14; 5:14, 18).

2. Legalismo não necessariamente é guardar uma “infinidade” de pequenos mandamentos dados por Deus – O Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) apresenta 613 preceitos, e obviamente o propósito de Deus era que cada um deles fosse obedecido “à risca” (Salmo 119:4). Alguns estudiosos calculam que o Novo Testamento apresenta cerca de 200 mandamentos, proporcionalmente mais do que o Antigo Testamento. Então, o problema não está no elevado número de exigências morais, nem em quão detalhados eles são. Deus deu cada norma para que realmente fosse obedecida.

Paulo nunca falou contra qualquer dos mandamentos dados por Deus. Em vez disso, ele costumava citar mandamentos específicos da lei, mostrando que a ela continua a ser um guia para a vida (Romanos 13:9; 1Coríntios 10:14, 20-21; Efésios 6:1-2). O próprio Paulo apresentava listas de normas para o comportamento cristão (veja, por exemplo, Romanos 12-13; Gálatas 5-6; Efésios 5-6; Colossenses 3). Portanto, o apóstolo nunca viu nenhum problema na existência de “regras”.

3. Legalismo não consiste necessariamente em seguir normas que não estão na Bíblia – Os judeus da época de Jesus enfrentavam a mesma dificuldade que nós: a Bíblia não apresenta instruções específicas para todas as situações da vida. Muitas mudanças haviam ocorrido na sociedade desde que Deus havia dado Seus mandamentos a Moisés, 1.500 anos antes. Por isso, o objetivo das tradições dos judeus era ampliar os mandamentos do Antigo Testamento a situações concretas de sua própria época. Em vez de ser uma “tradição morta”, o objetivo da tradição judaica era tornar os ensinos bíblicos relevantes para outros tempos.

Por causa dessas regras, muitos dizem que os judeus, principalmente os fariseus, eram legalistas. É verdade que muitas dessas regras eram exageradas e desnecessárias, mas não era primariamente por isso que os judeus em geral eram legalistas. Jesus Se opôs a várias tradições, não por serem legalistas em si mesmas, e sim porque invalidavam os próprios mandamentos bíblicos (Mateus 15:3-6).

A prática de ampliar os mandamentos bíblicos não se limita aos judeus. Alguns cristãos escolhem, voluntariamente, seguir um estilo de vida mais rígido que o apresentado na Bíblia (veja Mateus 19:11, 12; Romanos 14:5; 1Coríntios 7:7-9; 10:28, 29), e não existe necessariamente nenhum problema nisso. Por questões de personalidade e formação, sempre haverá alguns cristãos “mais rigorosos” e outros “mais flexíveis” em questões que não estão explícitas na Bíblia e/ou que não envolvem princípios bíblicos. Mas o primeiro grupo não é necessariamente mais legalista, nem o segundo, menos consagrado.

4. O legalismo judaico não era necessariamente a obediência às leis cerimoniais – É verdade que, depois da morte de Cristo, não mais precisamos guardar as leis relacionadas ao templo (Daniel 9:27; Hebreus 10:1-4). Mas o problema do legalismo não era primariamente esse. Até mesmo Paulo, que falou tanto contra as “obras da lei” como meio de justificação, viveu até a morte como judeu. Portanto, observava as festas judaicas, frequentava o templo e circuncidou seu assistente judeu Timóteo (Atos 16:3; 20:16; 21:17-26; 25:8; 28:17). Os demais cristãos judeus seguiam as mesmas práticas (Atos 2:46; 3:1; 21:20).

Em Gálatas (e no restante de suas cartas), o apóstolo não condena os rituais do templo em si nem qualquer outro aspecto das leis cerimoniais. Essa não era a preocupação dele. A circuncisão era somente a “ponta do iceberg”, porque o problema real era muito mais profundo. Por isso, na maior parte de Gálatas, Paulo nem sequer menciona a circuncisão, mas trata da lei como um todo (o que inclui os Dez Mandamentos). O principal erro dos oponentes de Paulo era apresentar a obediência à lei (moral e/ou cerimonial) como meio de justificação, em vez de ensinarem que a guarda dos Dez Mandamentos é a consequência da justificação pela fé.

Então, o que é legalismo?

Paulo jamais falou contra a obediência a qualquer parte da lei de Deus. O problema não era esse. Mas, se a obediência não é em si mesma sinônimo de legalismo, então o que é legalismo?

O legalismo judaico – Os judeus em geral acreditavam que o ser humano tem a capacidade de guardar a lei perfeitamente. Portanto, por meio da obediência, uma pessoa pode ser aceita diante de Deus e passar a fazer parte de Seu povo (Romanos 2:17; 9:31-32; 10:2-3).

Na teologia judaica, o conceito de justificação estava ligado ao conceito de recompensa. Muitos usavam uma balança para representar o juízo de Deus. Uma pessoa justificada (absolvida) no juízo era aquela cuja obediência (ou boas obras) pesava mais que suas transgressões (veja Lucas 18:10-14). A misericórdia de Deus apenas adicionava mérito àqueles que a pessoa já possuía.

O legalismo cristão – O legalismo mantido por muitos dos primeiros cristãos não era igual ao defendido pelos judeus em geral. Os cristãos legalistas acreditavam na graça de Deus e no sacrifício de Cristo. O problema é que ensinavam que a obediência à lei (inclusive aos Dez Mandamentos) seria necessária para a justificação (Atos 15:1, 5; 21:21). Eles não negavam o fato de que somos salvos pelo sacrifício de Cristo, mas a cruz só podia salvar aqueles que se tornassem parte do povo da aliança através da obediência a toda a lei.

Para aqueles cristãos judeus, o sacrifício de Jesus somente acrescentaria peso ao prato da obediência na balança do juízo. Essas pessoas acreditavam que a fé não era suficiente por si só; ela devia ser complementada com a obediência, como se a obediência acrescentasse algo ao ato da justificação. Portanto, a justificação era uma mescla entre a graça de Deus e a obediência à lei. Isso é o que Paulo tinha em mente quando disse que “o homem não é justificado por obras da lei” (Gálatas 2:16) ou “pela prática da lei” (NVI).

O legalismo é mais profundo do que a maioria imagina – Para muitos, ser legalista é ter um comportamento rigoroso demais, deixando de fazer um elevado número de coisas. Com isso, as pessoas “mais equilibradas” se tranquilizam com o pensamento de que estão muito distantes do legalismo, já que dão tanta atenção a normas e regras.

Ao falarmos anteriormente sobre o que não é legalismo, não estamos defendendo uma compreensão extremista sobre o comportamento. É verdade que não podemos considerar todas as normas divinas em pé de igualdade (veja Mateus 23:23). Além disso, também precisamos cuidar para não confundir costumes culturais (corretos ou não) com a vontade de Deus.

Mas, segundo a Bíblia, o legalismo é algo muito mais sutil e, portanto, muito mais grave. É mais do que seguir uma “infinidade” de orientações dadas por Deus ou mesmo seguir normas que não estão explícitas na Palavra de Deus.

Legalismo não é tanto o número de normas que seguimos, nem quão rigorosamente vivemos, mas nossa atitude diante das orientações de Deus, qual função acreditamos que Sua lei desempenha em nossa vida. Legalismo não é tanto seguir mandamentos não bíblicos, mas seguir mandamentos bíblicos por motivos errados. Legalismo não é uma questão externa, mas interna.

Por essa razão, mesmo um cristão que se considere “mais equilibrado” pode ser legalista. Talvez ele considere legalistas aqueles que tentam seguir um elevado número de normas, não têm determinadas práticas nem frequentam certos lugares. E, em muitos casos, esse indivíduo está correto em sua avaliação. Porém, é possível que esse “mais equilibrado” acredite que a obediência aos “requisitos mínimos” da vontade de Deus contribua para sua salvação. Se for assim, ele será tão legalista quanto o mais fanático extremista. Portanto, ninguém está isento do legalismo.

De qualquer modo, como o legalismo tem mais que ver com nossa atitude diante das recomendações de Deus, deveríamos pensar duas (ou mais) vezes antes de julgar os outros, de considerá-los legalistas, apenas por suas ações (veja Mateus 7:1-2). Em vez de aplicar as orientações de Gálatas (como o restante da Bíblia) a outras pessoas, precisamos aplicá-las a nós mesmos.

Perguntas para reflexão e aplicação

1. Você acha que obedece a lei de Deus de maneira satisfatória? Você realmente sente que a guarda tão bem que pode ser aprovado por Deus, aceito por Ele, com base em suas boas obras? Se sim, por quê? Se não, por quê?

2. Qual é a sua reação ao descobrir ou relembrar que somos salvos somente pela fé, e não pela obediência à lei? Você tem medo, achando que muitas pessoas podem usar isso como desculpa pelo pecado? Ou você se alegra – e por quê?

3. A morte de Cristo é tudo para você? Que diferença isso faz em seu amor por Ele e em sua vida cotidiana?

4. Como você explicaria a “justificação pela fé” a alguém que nunca esteve em uma igreja ou nunca leu a Bíblia?

5. Em Gálatas 2:19, Paulo explica que, quando estava tentando ser salvo através da obediência à lei, não era capaz de “viver para Deus”. Em sua opinião, por que isso ocorreu?

6. Agora Paulo morre para a lei como meio de se salvar, pois sabe que é a obediência e morte de Cristo que o salvam, e não a sua própria obediência (que ele nem sequer tem). Por que isso significa que agora ele é capaz de “viver para Deus” de verdade?[4]

7. Na prática, o que significa que “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Como as pessoas ao seu redor podem perceber isso? Menciona alguns exemplos concretos.

Referências

1. Veja Thomas R. Schreiner, “Obras da lei”, em Dicionário de Paulo e Suas Cartas, ed. Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin e Daniel G. Reid (São Paulo: Vida Nova; Paulus; Loyola, 2008), p. 883-887.

2. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 62-63 (grifos no original).

3. Augustus Nicodemus Lopes, Livres em Cristo: A mensagem de Gálatas para a igreja de hoje (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 116-117.

4. As perguntas 5 e 6 foram adaptadas de Timothy Keller, Gálatas: O valor inestimável do evangelho, Série Estudando a Palavra (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 27.

Você pode ver todo o estudo de Gálatas aqui

Tags , , , .Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *