A Unidade do Evangelho (Gálatas 2:1-14) (Primeira parte) por Matheus Cardoso

No estudo anterior, vimos que as acusações contra o apóstolo Paulo eram basicamente as seguintes: (1) tudo o que Paulo sabia sobre o evangelho, ele aprendeu com outros líderes da igreja e (2) ele distorceu o que lhe foi ensinado. Em Gálatas 1:11- 24, o apóstolo respondeu à primeira acusação ao mostrar que o próprio Cristo lhe revelou o evangelho. Em Gálatas 2, Paulo responde à segunda acusação.

Podemos visualizar de maneira bastante concreta o que estava acontecendo nas igrejas que tinham sido fundadas por Paulo. Logo depois que ele pregava o evangelho aos gentios (isto é, não judeus), batizava essas pessoas e seguia para novas viagens missionárias, chegavam naquela igreja alguns missionários judeus cristãos. É fácil imaginar o seguinte diálogo:[1]

 – Vocês são cristãos?

– Somos – respondiam os cristãos gentios. – Cremos em Jesus Cristo como Senhor e Salvador.

 Os missionários judeus então diziam:

– Que coisa maravilhosa! Nós também somos! Então vocês já foram circuncidados?

– Não – informavam com estranheza os recém-convertidos.

– Como não foram?! Quem pregou o evangelho para vocês?

– Foi o apóstolo Paulo. – Já imaginávamos! Vocês sabiam que Paulo não pertence aos Doze? Ele veio depois. Não faz parte do grupo original dos apóstolos de Cristo. Ele não ensinou que vocês deviam se circuncidar?

– Não. Ele disse que pela fé já estamos salvos e não precisamos de mais nada. O que devemos fazer, depois de ter sido salvos, é obedecer a Deus, perseverar na verdade, pregar o evangelho a outras pessoas e fazer parte da igreja.

– Paulo ensinou tudo errado! Vocês não são cristãos completos ainda. Para que sejam cristãos de fato e possam entrar no reino de Deus, é preciso ir além de somente crer em Jesus. Vocês precisam se circuncidar e seguir toda a lei de Moisés, ou seja, parar de viver dessa maneira que vocês vivem. Vocês têm de se tornar judeus, porque Jesus era judeu. A Bíblia que estão lendo é a Bíblia dos judeus. Vocês não podem ser cristãos nem se salvar se não praticarem todas as obras da lei de Moisés. É preciso se tornar judeu praticante para poder entrar no céu.

E a partir daí a confusão se instalava nas igrejas que Paulo havia fundado. Os cristãos passavam a ter dúvidas e ficavam sem saber direito o que responder.

É dentro desse contexto que o apóstolo Paulo escreveu a Carta aos Gálatas.

Lemos em Gálatas 2:1-10:

1 Catorze anos depois, fui outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também Tito. 2 Fui em obediência a uma revelação. E lhes apresentei o evangelho que prego entre os gentios – mas fiz isso em particular aos que pareciam de maior influência –, para não correr ou ter corrido em vão. 3 Mas, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi obrigado a submeter-se à circuncisão. 4 E isto surgiu por causa dos falsos irmãos que se haviam infiltrado para espreitar a liberdade que temos em Cristo Jesus e nos reduzir à escravidão. 5 A esses não nos submetemos por um instante sequer, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vocês.

6 E, quanto àqueles que pareciam ser alguma coisa – o que eles foram, no passado, não me interessa; Deus não aceita a aparência do homem –, esses, digo, que pareciam ser de maior influência, nada me acrescentaram. 7 Pelo contrário, quando viram que me havia sido confiado o evangelho da incircuncisão, assim como a Pedro foi confiado o evangelho da circuncisão 8 – pois aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão também operou eficazmente em mim para com os gentios – 9 e, quando reconheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, que eram reputados colunas, estenderam a mim e a Barnabé a mão direita da comunhão, a fim de que nós fôssemos para os gentios e eles fossem para a circuncisão. 10 Somente recomendaram que nos lembrássemos dos pobres, o que também me esforcei por fazer.

Paulo é aceito pelos apóstolos

Em obediência a uma revelação divina, Paulo se dirigiu a Jerusalém (Gl 2:1, 2) para falar com os apóstolos. Existem boas razões para crer que essa reunião é a mesma descrita em Atos 15, conhecida como o Concílio de Jerusalém. Como já vimos, esse concílio foi convocado porque alguns ensinavam que, se os gentios não fossem circuncidados, não poderiam ser salvos (At 15:1).

Nessa reunião, Paulo apresentou a Pedro, Tiago e João “o evangelho que [pregava] aos gentios” (Gl 2:2). Paulo defendia que a fé em Cristo, e não a circuncisão, era a única exigência para ser salvo. Caso houvesse dúvidas sobre o que exatamente era ensinado por Paulo, esse teria sido o momento para que tudo fosse esclarecido. Teriam os líderes da igreja discordado de algum detalhe da teologia do apóstolo? Ou a teriam rejeitado completamente?

Por meio de três atitudes tomadas no Concílio de Jerusalém, Pedro, Tiago e João mostraram claramente que estavam do lado de Paulo:

1. Alguns “falsos irmãos” queriam obrigar o gentio Tito a ser circuncidado (v. 4), mas os líderes da igreja se opuseram a essa ideia (v. 3). A posição dos apóstolos foi tão firme que, por fim, Tito não foi circuncidado.

2. Depois que Paulo lhes apresentou o que ensinava aos gentios, Pedro, Tiago e João não lhe “acrescentaram nada” (v. 6). O evangelho proclamado por Paulo era completo – era o único evangelho, o mesmo ensinado pelos demais apóstolos. Os líderes da igreja endossaram seu ensino, “nada tirando nem acrescentando à sua mensagem”.

3. Pedro, Tiago e João reconheceram que Deus havia concedido a Paulo a “graça” do ministério apostólico e lhe “estenderam a mão” em sinal de harmonia (v. 9). Deus escolhera Paulo para anunciar o evangelho aos gentios “assim como” escolhera Pedro para anunciá-lo aos judeus (v. 7, 8). Paulo e Pedro tinham públicos, métodos e ênfases diferentes, mas apresentavam a mesma mensagem – o único evangelho.

Com esses argumentos, Paulo respondeu à acusação de que teria distorcido o evangelho ensinado pelos apóstolos. Ele mostrou que a realidade era o oposto: seus oponentes é que discordavam do ensino dos líderes da igreja!

Portanto, os apóstolos de Jerusalém aceitaram sem reservas a mensagem de Paulo. Eles estavam juntos na pregação do mesmo evangelho – as mesmas boas-novas – isto é, que a graça de Deus é dada mediante a fé em Cristo, e não pela observância da lei. É evidente que os líderes de Jerusalém não consideravam a circuncisão necessária a um gentio como Tito (Gl 2:3).

O que estava em jogo

“De um lado dessa disputa, temos Paulo a afirmar: O evangelho da fé em Cristo é para gente de todas as culturas. Do outro lado, temos seus opositores dizendo: Nem todo o povo judeu é cristão, mas todos os cristãos devem se tornar judeus.

“Se os apóstolos de Jerusalém tivessem tomado o partido de quem ensinava contra Paulo, ou mesmo se os tolerassem, teriam dividido a igreja em duas. Nenhum dos lados teria aceitado o outro plenamente, e ambos questionariam se os membros do outro grupo eram mesmo salvos! As igrejas gentias de Paulo duvidariam de que as igrejas judaicas tivessem mesmo fé em Cristo, e as igrejas judaicas também duvidariam da salvação dos gentios.”[2]

Paulo versus cristãos judeus?

Ao ler os relatos de Atos 15 e Gálatas 2, alguns podem concluir que o conflito fosse o seguinte: de um lado, Paulo, praticamente sozinho, lutando contra a ideia de que os gentios precisavam ser circuncidados; de outro lado, quase todos os cristãos judeus, querendo impor seus costumes aos gentios. Alguns chegam a pensar que essa foi a situação durante toda a vida de Paulo.

Mas essa imagem não corresponde à realidade. Na época dos apóstolos, multidões de judeus estavam constantemente aceitando Jesus como o Messias (At 9:31, 35; 14:1; 16:5; 21:20). Isso incluía “grande número de sacerdotes” (At 6:7). Mas quem exigia que os gentios fossem circuncidados eram “alguns homens” (At 15:1), “alguns” fariseus (v. 5), “alguns falsos irmãos” (Gl 2:4).

Não devemos imaginar que a maioria dos cristãos judeus se opusesse ao ensino de Paulo. Em realidade, nesse grupo havia sempre uma minoria que fazia muito barulho e espalhava boatos a respeito de Paulo entre a comunidade cristã judaica (At 21:20, 21). As acusações eram quase sempre levantadas por judeus não cristãos (At 21:27, 28; 23:12). No entanto, certamente os cristãos judeus em geral seguiam o pensamento de Pedro, Tiago e João, os líderes da igreja.

O que havia de mal na circuncisão?

Ao ver as duras palavras de Paulo contra a circuncisão, alguns podem chegar a conclusões equivocadas. De fato, “seria um erro supor que Paulo era contrário à circuncisão em si” (Lição de Adultos, segunda-feira). Três vezes em suas cartas, o apóstolo afirmou que, se não existe virtude na circuncisão, tampouco há no fato de não ser circuncidado (Gl 5:6; 6:15; 1Co 7:18, 19).

Posteriormente, muitos cristãos passaram a considerar a circuncisão como errada em si mesma. O Concílio Ecumênico de Florença, ocorrido em 1442, advertiu que ninguém deveria praticar “a circuncisão, seja antes ou depois do batismo, pois, coloquem ou não [!] sua esperança nela, não pode ser observada sem a perda da salvação eterna”. Essa posição extremista não está de acordo com o ensino de Paulo. Se o problema fosse a circuncisão em si mesma, Paulo teria sido hipócrita e legalista ao circuncidar Timóteo (At 16:3).

Então, o que existia de mal em exigir que os gentios fossem circuncidados? Paulo (apoiado pelos demais apóstolos) se opôs a isso por duas razões:

1. No Antigo Testamento, a circuncisão era o sinal de que a pessoa passava a fazer parte de Israel, o povo da aliança (Gn 17:10, 14). Ao exigir que os gentios fossem circuncidados, os oponentes de Paulo estavam dizendo que, para ser salva, uma pessoa precisava entrar para o povo de Israel. Isso era verdade no tempo do Antigo Testamento, e Deus aceitou muitos gentios como parte de Israel (Is 56:3-7).

Mas a situação mudou com a vinda de Cristo. As distinções étnicas foram desfeitas quanto à salvação, e todos aqueles que aceitam a Jesus – judeus e gentios – se tornam parte do povo de Deus (Gl 3:28, 29; 6:16; Ef 2:11-19; 1Pe 2:10). Exigir a circuncisão de gentios seria um retrocesso no tempo. Antes mesmo do Concílio de Jerusalém (At 15), Deus já havia mostrado que os gentios não precisam ser circuncidados para fazer parte de Seu povo (At 2:5, 37-39; 8:4-6, 12-17; 10:1, 44-48; 11:17, 18).

2. Como veremos nos próximos estudos, o grande problema dos oponentes de Paulo foi acreditar que, pela obediência à lei de Deus, teriam seus pecados perdoados e seriam aceitos por Ele. Em outras palavras, alcançariam a justificação. Para eles, a circuncisão era a porta de entrada para fazer parte do povo de Deus, e a obediência era o caminho (Gl 5:3, 4). Paulo não podia admitir a circuncisão nem a obediência a qualquer outra parte da lei (inclusive aos Dez Mandamentos) como meio de justificação.

“As inúmeras regras para ‘purificação’ das leis de Moisés foram projetadas (entre outras coisas) para nos mostrar como é impossível nos tornarmos perfeitamente aceitáveis diante de um Deus santo. Mas os ‘falsos irmãos’ tinham usado essas regras a fim de ensinar exatamente o oposto: que podemos nos tornar puros e mais aceitáveis a Deus mediante a estrita conformidade às regras.

“O número de vezes que o Novo Testamento fala sobre esse erro mostra como é fácil entender tudo errado. ‘Tanto ofertas como sacrifícios que se oferecem não podem aperfeiçoar quem presta o culto. Essas coisas se referiam somente à comida, bebida e às diversas lavagens cerimoniais, ordenanças humanas impostas até o tempo de uma reforma’ (Hb 9.9,10; veja também Cl 2.16). Só em Cristo podemos nos tornar ‘santos, inculpáveis e irrepreensíveis diante dele’ (Cl 1.22). Em outras palavras, as leis cerimoniais não foram tanto abolidas ou substituídas, e sim cumpridas. Elas são cumpridas em Cristo; é Cristo que nos purifica (veja Mc 7.14-19; Jo 13.2-11).”[3]

A liberdade do evangelho

Entre vários outros aspectos da liberdade, “o evangelho leva à liberdade emocional. Quem acredita que nosso relacionamento com Deus se baseia na observação de um comportamento moral caminha sobre uma esteira móvel infinita de culpa e insegurança. Como revelam as cartas de Paulo, ele não liberou os crentes gentios dos imperativos morais dos dez mandamentos. Os cristãos não podiam mentir, roubar, cometer adultério e assim por diante. Todavia, mesmo não estando livres da lei moral como um modo de vida, os cristãos estão livres dela como um sistema de salvação. Obedecemos, não por medo e insegurança quanto à esperança de merecer nossa salvação, mas na liberdade e segurança de saber que já estamos salvos em Cristo. Obedecemos na liberdade da gratidão.

“Logo, tanto os falsos mestres quanto Paulo disseram aos cristãos para obedecerem aos dez mandamentos, mas por razões e motivações completamente diversas. E, a menos que seu motivo para obedecer a lei de Deus seja a gratidão pela graça do evangelho, você está em escravidão.”

Unidade no central, diversidade no periférico

Numa época de profundas divisões dentro do cristianismo e até mesmo dentro das denominações individuais, a atitude de Paulo diante da unidade da igreja tem muito a nos ensinar. Por um lado, o apóstolo é intransigente naquilo que é inegociável e que diz respeito à identidade cristã. A unidade é “em Cristo Jesus” (Gl 2:4). Por outro lado, “precisamos entender mais claramente que essa unidade não se baseia na concordância absoluta em todos os detalhes, mas na harmonia em relação aos fundamentos centrais da mensagem bíblica centrada no evangelho e sua vivência na vida cristã (como os últimos quatro capítulos de Gálatas vão ilustrar)”.

Perguntas para reflexão e aplicação

1. Hoje a circuncisão não é mais um problema. Contudo, quais são os desafios atuais entre os cristãos? O que ameaça a unidade da igreja? Como lidamos com essa realidade?

2. Quais são alguns dos riscos em se confiar em líderes humanos, e não em Cristo e na Sua Palavra?

3. De que maneiras Paulo se esforçava para promover a unidade da igreja, mesmo enquanto enfrentava difamação e perseguições? Como podemos imitar o exemplo dele?

4. Todos têm suas ideias de como um verdadeiro cristão deve se comportar. Algumas dessas ideias vêm de nossa educação ou tradição – e mesmo algumas destas podem ter algum fundamento bíblico. Como podemos evitar que o evangelho seja contaminado com nossas tentativas de impor aos outros nossos próprios conceitos de como as pessoas devem pensar ou agir?

5. Já houve ocasiões em que você começou a pensar que seu desempenho conta para sua salvação? O que o levou a pensar dessa maneira?

6. Quais as atitudes “boas” e “apropriadas” que sua cultura e criação lhe ensinaram? Como você poderia acrescentar essas coisas à crença em Cristo como uma expectativa para outros cristãos?

7. Você já se sentiu culpado ou inseguro em seu relacionamento com Deus? O que isso pode lhe dizer a respeito do modo como você vê sua aceitação por parte dele?

Referências

1. Adaptado de Augustus Nicodemus Lopes, Livres em Cristo: A mensagem de Gálatas para a igreja de hoje (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 49-50.

2. Timothy Keller, Gálatas Para Você, Série A Palavra de Deus para Você (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 41.

3. Ibid., p. 43-44.

4. Ibid., p. 45 (grifo no original).

5. George R. Knight, Exploring Galatians and Ephesians: A Devotional Commentary (Hagerstown: Review and Herald, 2005).

6. As perguntas 5 a 7 foram extraídas de Keller, Gálatas Para Você, p. 46.

Você pode ver todo o estudo de Gálatas aqui

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