Dr. Jon Paulien | The Battle of Armageddon — Traduzido e adaptado por Erick Faria para a Revista Zelota
Jon Paulien é um teólogo adventista norte-americano. Pastor em Nova Iorque por muitos anos, Paulien lecionou Interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Adventista de Andrews. Ele também foi reitor da Universidade Adventista de Loma Linda de 2007 a 2019, e atualmente leciona na mesma Universidade. Estudioso do Apocalipse já em sua dissertação de doutorado, Paulien publicou vários livros a respeito do assunto para a IASD norte-americana.
Conforme exploramos as principais declarações de Ellen G. White a respeito da legislação de um decreto dominical nos Estados Unidos no tempo do fim, precisamos manter em mente que essa é uma profecia não cumprida. Os seres humanos têm um histórico péssimo quando se trata de predizer os eventos futuros com base em profecias não cumpridas. Para melhorar esse quadro triste, é essencial manter em mente a evidência bíblica a respeito das profecias que de fato se cumpriram. Nelas, nós temos um registro de como Deus passa da predição para o cumprimento. Essas profecias apontam para certos princípios que nos ajudam a evitar os erros do passado quando se trata das profecias que ainda não se cumpriram.
Os mais importantes desses princípios, para o nosso propósito aqui, são os princípios 2, 4 e 6. Faremos uma breve revisão aqui:
O princípio 2 declara que Deus nem sempre é previsível. O cumprimento é frequentemente uma surpresa quando de fato acontece. Deus não cumpre cada detalhe das suas previsões por um bom número de razões. O mais importante é que a maioria das profecias é condicional (Jer 18:7-10, LDE 38—Ellen G. White diz que “todas as promessas e ameaças de Deus” são condicionais). Sempre que um profeta fala a respeito de eventos políticos na Terra essas profecias são condicionais, porque dependem do comportamento das nações ou entidades envolvidas. Se uma entidade incrédula se arrepende, Deus não executará a condenação que havia prometido. Se uma entidade consagrada cai em apostasia, Deus não cumprirá as promessas positivas que havia feito.
O princípio 4 declara que Deus encontra as pessoas no lugar em que elas estão. Isso significa que as profecias contêm elementos que são particularmente focados no tempo e lugar do profeta. Profecias precisam ser lidas à luz do contexto original em que foram dadas. E o princípio 6 está relacionado ao 4: ele declara que Deus, ao descrever o futuro, usa a linguagem do presente e passado do profeta. Isso significa que a profecia é sempre uma extensão natural do tempo e lugar do profeta. Sendo assim, outra razão para Deus não ser previsível é porque a linguagem, o tempo, o lugar e as circunstâncias das previsões originais podem mudar o suficiente ao longo do tempo de forma que o resultado final não seja exatamente como esperado. Isso é demonstrado vez após vez nos profetas do Antigo Testamento, sendo Isaías 11:15-16 o caso mais dramático, como notado em textos anteriores dessa série.
Muitos Adventistas do Sétimo Dia tratam as previsões de Ellen G. White como se elas fossem isentas desses padrões bíblicos. Eles acham que qualquer coisa que ela diga sobre o futuro é fixo e imutável simplesmente porque ela disse. Mas esse tipo de posição a respeito da inspiração não somente falha em considerar a evidência bíblica listada acima, mas também coloca a inspiração de Ellen G. White em perigo.
O caso clássico é sua declaração, feita em 1856, de que algumas pessoas da época ainda estariam vivas quando Jesus retornasse (Life Sketches, 321). Se enxergarmos as previsões de Ellen G. White como fixas e incondicionais, essa declaração colocaria sua inspiração e confiabilidade em questão. Mas qualquer um que tenha familiaridade com os padrões das profecias bíblicas que se cumpriram pensaria imediatamente em Jonas. Profecias (como o tempo da Segunda Vinda) que são sujeitas à resposta humana são condicionais, mesmo que as condições não sejam declaradas. O fato de cada detalhe de suas previsões não se cumprir ao pé da letra não coloca sua inspiração em xeque. Com isso em mente, estamos prontos para revisar as principais declarações a respeito do Decreto Dominical no Congresso dos Estados Unidos no tempo do fim.
Principais declarações de Ellen G. White
A primeira das mais conhecidas declarações de Ellen G. White sobre o Decreto Dominical no tempo do fim está no Grande Conflito (p. 573). Citarei a declaração completa, e então farei alguns breves comentários:
“No movimento ora em ação nos Estados Unidos a fim de conseguir para as instituições e usos da igreja o apoio do Estado, os protestantes estão a seguir as pegadas dos romanistas. Na verdade, mais que isto, estão abrindo a porta para o papado a fim de adquirir na América do Norte protestante a supremacia que perdeu no Velho Mundo. E o que dá maior significação a este movimento é o fato de que o principal objeto visado é a obrigatoriedade da observância do domingo, prática que se originou com Roma, e que ela alega como sinal de sua autoridade. É o espírito do papado – espírito de conformidade com os costumes mundanos, com a veneração das tradições humanas acima dos mandamentos de Deus – que está embebendo as igrejas protestantes e levando-as a fazer a mesma obra de exaltação do domingo, a qual antes delas fez o papado.”
Note primeiro que essa declaração se refere à “obrigatoriedade da observância do domingo” nos Estados Unidos. É algo que foi comumente feito na Europa, quando a Igreja Romana tinha muito mais autoridade do que jamais teve nos Estados Unidos. Mas nesse caso, a força propulsora por trás dessa obrigatoriedade era a liderança Protestante do governo americano no século 19. Ellen G. White não estava falando de um evento futuro, distante: os movimentos para tornar a observância do Domingo obrigatória estavam “ora em ação nos Estados Unidos“. Ela estava falando sobre os eventos correntes no seu contexto e seus resultados para o futuro.
Ela retorna a essa questão na página 579 do Grande Conflito:
“Mostrou-se que os Estados Unidos são o poder representado pela besta de chifres semelhantes aos do cordeiro, e que esta profecia se cumprirá quando aquela nação impuser a observância do domingo, que Roma alega ser um reconhecimento especial de sua supremacia. Mas nesta homenagem ao papado os Estados Unidos não estarão sós. A influência de Roma nos países que uma vez já lhe reconheceram o domínio, está ainda longe de ser destruída. E a profecia prevê uma restauração de seu poder. […] Tanto no Velho como no Novo Mundo o papado receberá homenagem pela honra prestada à instituição do domingo, que repousa unicamente na autoridade da Igreja de Roma. Durante mais de meio século, investigadores das profecias nos Estados Unidos têm apresentado ao mundo este testemunho. Nos acontecimentos que ora estão a ocorrer, percebe-se rápido progresso no sentido do cumprimento da profecia.”
Nessa declaração ela está claramente fazendo uma referência a Apocalipse 13 quando menciona a besta com chifres como de cordeiro (Ap 13:11). Ela indica que essa profecia será cumprida quando os Estados Unidos como nação forçarem a observância do domingo. De alguma forma isso também ocorrerá no “Velho Mundo”, uma referência comum para a Europa nos tempos de Ellen G. White. E, novamente, ela deixa claro que esse não é um evento futuro, distante. O movimento em direção à obrigatoriedade da observância do Domingo já estava ocorrendo e seguindo rapidamente em direção ao resultado final que incluiria tanto os Estados Unidos quanto a Europa. Sua profecia do futuro era uma extensão natural dos eventos ocorrendo em seus dias.
Ao todo, Ellen G. White faz talvez umas cem referências à questão do sábado-domingo no tempo do fim. Mas essa declaração é diferente das outras. E a diferença é que ela não está meramente se referindo à legislação Dominical aqui e ali em vários estados, mas sim a algo que aconteceria à Nação como um todo. Para entender a importância disso, é útil saber que a história do Grande Conflito veio em sete edições (Primeiros Escritos, Dons Espirituais, Espírito de Profecia, História da Redenção e três edições of The Great Controversy—1884, 1888, 1911).
O que pode surpreender alguns é que as cinco primeiras edições (até o Grande Conflito de 1884) falavam de forma geral a respeito da legislação dominical, sem especificar uma lei dominical nacional legislada no Congresso. É somente no ano de 1888, o mesmo ano em que o senador Henry Blair introduziu uma lei dominical no Congresso americano, que vemos o acréscimo de um movimento nacional para obrigar a observância do domingo nas suas previsões do Fim. Eu analisei duas coleções com todas as declarações de Ellen G. White sobre leis dominicais. Na verdade só existem duas declarações a respeito de uma lei dominical nacional, e ambas foram escritas no ano de 1888 (declarações posteriores, como a edição de 1911 do Grande Conflito, são reimpressões das declarações anteriores).
Ellen G. White retorna à questão de uma lei dominical nacional no tempo do fim na página 592 do Grande Conflito:
“Os dignitários da Igreja e do Estado unir-se-ão para subornar, persuadir ou forçar todas as classes a honrar o domingo. A falta de autoridade divina será suprida por legislação opressiva. A corrupção política está destruindo o amor à justiça e a consideração para com a verdade; e mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo. A liberdade de consciência, obtida a tão elevado preço de sacrifício, não mais será respeitada. No conflito prestes a se desencadear, veremos exemplificadas as palavras do profeta: ‘O dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua semente, os que guardam os mandamentos de Deus, e têm o testemunho de Jesus Cristo’ Apoc. 12:17.”
Uma declaração breve sobre essa questão foi incluída no Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia: “O decreto obrigando a adoração desse dia se estenderá a todo o mundo. Em um grau limitado, ele já se estendeu. Em diversos lugares o poder civil está falando com a voz de um dragão, assim como o rei pagão falou aos hebreus cativos.” Existem dois elementos aqui que não estão no Grande Conflito. Primeiro, ela declara que o decreto forçando a declaração do domingo deve ser mundial, e não só nos Estados Unidos. Segundo, mesmo esse desenvolvimento já estava em progresso no tempo em que ela escreveu essa declaração. Era algo que estava acontecendo no tempo que ela vivia.
A declaração final que eu irei compartilhar com vocês aqui é a mais específica de todas. Foi incluída na revista Review and Herald, perto do fim de 1888:
“Quando nossa nação, em seus conselhos legislativos, promulgar leis para obrigar as consciências dos homens em relação aos seus privilégios religiosos, forçando a observância do domingo, e trazendo o poder opressivo sobre aqueles que guardam o sábado do sétimo dia, a lei de Deus, será, para todos fins e propósitos, anulada em nossa terra; e a apostasia nacional será seguida pela ruína nacional. […] Se, em nossa terra de liberdade ostentada, um governo protestante sacrificar cada princípio que faz parte de sua Constituição, e propagar a falsidade e o engano papal, bem podemos nós rogar ‘É tempo para que tu, Senhor, operes, pois vossa Lei foi anulada’.”
Os Estados Unidos, em seus conselhos legislativos (a Câmara dos Deputados e o Senado), promulgarão leis para forçar a observância do domingo. Tal possibilidade estava bem diante dela naquele tempo, no projeto de lei do Senador Blair. Mas ela faz um comentário adicional que se mostrará interessante. Na sua compreensão, essa legislação será a ação de um governo protestante, que também era uma realidade nos seus dias.
Na minha perspectiva, esse é um resumo das declarações mais pertinentes a respeito da questão que estamos considerando. Essas previsões se cumprirão simplesmente porque ela disse? Da perspectiva de um crente, essa seria a resposta mais simples. Mas um acadêmico levanta um ponto desconfortável: os princípios bíblicos a respeito das profecias cumpridas sugerem cuidado em tirar essas conclusões?
Ellen G. White e os princípios proféticos
A premissa padrão entre muitos adventistas é que toda previsão feita por Ellen G. White precisa se cumprir em algum ponto no futuro, sem condições. Essa posição é semelhante àquela que os fariseus aplicavam ao Antigo Testamento nos dias de Jesus. Nós todos sabemos como isso terminou.
Considerando tanto os princípios de interpretação profética da Bíblia quanto as realidades históricas dos anos 1880, eu sugiro que tenhamos um pouco de cuidado antes de abraçar acriticamente essa premissa padrão a respeito das leis dominicais futuras nos Estados Unidos e em outros lugares. Se Ellen G. White estivesse viva hoje, existe pelo menos uma chance de que sua descrição do Fim fosse algo diferente do que foi nos anos 1880. Vamos considerar as evidências para esse cuidado que estou sugerindo.
Primeiramente, uma abordagem incondicional das previsões de Ellen G. White é contrária à evidência das profecias cumpridas na Bíblia. Nós percebemos que (2) Deus nem sempre é previsível; que (4) Deus encontra as pessoas no lugar em que estão; que (6) Deus usa a linguagem do passado e presente de um profeta para descrever o futuro; e que (6) o cumprimento das profecias é melhor compreendido durante ou depois do cumprimento. Eu diria que uma interpretação das profecias não cumpridas de Ellen G. White precisa estar alinhada com a evidência bíblica.
Consideremos brevemente o contexto das suas declarações mais específicas a respeito das leis dominicais nacionais no fim dos anos 1880. Naquele tempo, tanto os Adventistas do Sétimo Dia quanto muitos outros americanos viam três grandes ameaças no âmbito público. A primeira era o medo da apostasia protestante; de que o protestantismo na América perdesse o foco nos princípios da Reforma, que sustentaram os princípios fundadores da nação estadunidense. A segunda grande ameaça foi a ascensão do catolicismo romano nos Estados Unidos. Em 1840, os católicos compunham cerca de 5% da população estadunidense. Em meados dos anos 1880, devido à imigração intensa de lugares como Irlanda, Itália e Polônia, os católicos passaram para cerca de 17% da população, e o catolicismo estava pela primeira vez alongando seus músculos políticos nos Estados Unidos. Isso alarmou tanto protestantes quanto adventistas. O amor por bares e carnavais que os católicos trouxeram da Europa fez com que muitos sentissem que a ordem social estava sendo ameaçada. A terceira grande ameaça foi a ascensão do espiritualismo como uma grande influência no discurso político daquele tempo. A declaração famosa sobre as “mãos que se estendem sobre o abismo” nomeia exatamente todas essas três ameaças (Grande Conflito, p. 588). Uma união dessas três forças foi vista como a maior ameaça, tanto para o adventismo quanto para a república estadunidense.
O protestantismo reagiu a esses desenvolvimentos de duas formas, uma mais popular do que a outra entre os adventistas. Primeiro veio o movimento para banir a produção e venda de álcool nos Estados Unidos, que veio a ser chamado de “Lei Seca”. Ellen G. White encontrou essa causa em comum com a União das Mulheres Cristãs pela Temperança (WCTU, no inglês, Women’s Christian Temperance Union), e algumas vezes discursou em seus comícios. Mas a WCTU e outras entidades protestantes também viam a legislação dominical como uma forma de preservar o caráter dos EUA como uma nação protestante. Eles sentiam que o país estava mudando e que as leis dominicais eram uma forma de segurar a maré. As declarações mais famosas de Ellen G. White a respeito do decreto dominical foram escritas no meio desses desenvolvimentos. Assim, elas devem ser entendidas à luz dos princípios bíblicos delineados nos textos anteriores. Deus estava usando a linguagem e as experiências do passado e presente de Ellen G. White, a fim de pintar um quadro do futuro. Sua descrição do futuro era, portanto, uma extensão natural do seu próprio tempo e lugar. As visões que lhe foram dadas a encontraram exatamente no tempo e lugar em que ela estava. Considerando o quanto o mundo mudou nos últimos 130 anos, seria surpreendente se o desfecho do tempo do fim acabasse sendo mais previsível do que as próprias profecias que se cumpriram nos tempos bíblicos.