Apocalipse 14:14-20
“Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado sobre a nuvem um semelhante a filho de homem, tendo na cabeça uma coroa de ouro e na mão uma foice afiada. Outro anjo saiu do santuário, gritando em grande voz para aquele que se achava sentado sobre a nuvem: Toma a tua foice e ceifa, pois chegou a hora de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu! E aquele que estava sentado sobre a nuvem passou a sua foice sobre a terra, e a terra foi ceifada.” (Apocalipse 14:14-16).
Esta representação simbólica da segunda vinda de Cristo como Rei e Juiz da terra une duas cenas separadas de juízo no Antigo Testamento. As frases, “nuvem branca” sobre a qual está sentado “um semelhante ao Filho do Homem”, são frases adotadas da cena de juízo de Daniel 7.
O chamado para segar a terra com uma “foice aguda” está tomada diretamente da cena de juízo de Joel 3. A ordem que dá um anjo, “toma a tua foice e ceifa, pois chegou a hora de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu!” (Apocalipse 14:15), é uma expansão deliberada de Joel 3:13.
A fusão das profecias anteriores de juízo demonstra que João considerava estas predições hebraicas como complementares uma da outra. Com engenho criador em Apocalipse 14, João estrutura o conceito do juízo em torno de Cristo como Juiz de toda a humanidade, que é uma reinterpretação cristocêntrica do juízo que primeiro foi introduzido por Jesus:
“Então, verão o Filho do Homem vir nas nuvens, com grande poder e glória. E ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do céu” (Marcos 13:26, 27; cf. Mateus 24:30, 31).
Durante a audiência no tribunal diante do sumo sacerdote Caifás, Jesus declarou sob juramento que ele era na verdade o Messias e por conseguinte o Juiz final: “Desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mateus 26:64). O que Jesus predisse está descrito visualmente em Apocalipse 14:14. A frase “um como Filho de homem” (BJ) não é tirada dos Evangelhos, e sim diretamente de Daniel 7:13, o que indica claramente que a visão do juízo de Daniel 7 é o antecedente imediato de Apocalipse 14:14. É um descobrimento de um significado fundamental entender que Daniel 7 e Apocalipse 14 se relacionam entre si como verdade profética e verdade presente! O assunto essencial nesta revelação progressiva é o cumprimento cristológico da profecia messiânica de Daniel (Daniel 7:13, 14; Apocalipse 14:14; também 1:7, 13).
Esta declaração de Jesus foi uma afirmação chocante para o sumo sacerdote (Mateus 26:64) e inclusive para os próprios apóstolos de Jesus (24:30, 31). A visão do juízo de João em Apocalipse 14 confirma a nova revelação de Jesus como uma verdade sempre presente para a igreja de todos os tempos.
A sequência de Daniel dos acontecimentos históricos em capítulo 7 também se repete em Apocalipse 13 e 14: perseguição, juízo, reino messiânico. Assim como o reino de Deus incluía seu direito a julgar a todos os homens, assim também o reino de Cristo (a “coroa de ouro” real) está unida com o juízo final (a “foice aguda”). João Batista descreveu a vinda do Messias de Israel como uma colheita que separa o trigo da palha:
“Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que nunca se apagará” (Mateus 3:12).
Esta linguagem figurada indica que o juízo messiânico proporciona redenção aos santos. Serão reunidos como o trigo no celeiro eterno de Deus. J. M. Ford explica a colheita de Apocalipse 14 de acordo com isto: “Portanto, esta colheita [a de Apocalipse 14:14-16] é uma colheita de proteção em lugar de destruição e por conseguinte, segue naturalmente depois da exortação dos santos (vs. 12, 13)”.1
Apocalipse 14 começou com os 144.000 companheiros do Cordeiro como as “primícias” para Deus (Apocalipse 14:4). O capítulo conclui com uma visão da colheita total da humanidade. O anjo indica que “a seara da terra já amadureceu” (v. 15).
Uma questão muito importante é: O que foi que causou a maturação mundial de maneira que toda a terra está pronta para a colheita? A resposta pode encontrar-se na proclamação eficaz da tríplice mensagem, habilitado pelo Espírito Santo que iluminará toda a terra, tal como se descreve em Apocalipse 18:1-5. Uma pregação universal do evangelho assim, com a voz de Elias, converterá toda a terra em um “Monte Carmelo”, em um “vale de Josafá” ou “vale da decisão” (Joel 3:12, 15).
Em sua parábola do joio (Mateus 13:36-43), Jesus ampliou o campo até lhe dar uma extensão universal:
“O campo é o mundo, a boa semente são os filhos do Reino, e o joio são os filhos do Maligno. O inimigo que o semeou é o diabo; e a ceifa é o fim do mundo; e os ceifeiros são os anjos” (vs. 38, 39).
Depois Jesus enfatizou a separação final entre os ímpios e os justos com respeito a seu destino eterno:
“Mandará o Filho do Homem os seus anjos, e eles colherão do seu Reino tudo o que causa escândalo e os que cometem iniquidade. E os lançarão na fornalha de fogo; ali, haverá pranto e ranger de dentes” (vs. 41-43).
A visão do juízo de Apocalipse 14:14-20 serve como a confirmação dramática da parábola do joio de Jesus. A visão da grande colheita de uvas em Apocalipse 14:17-20 amplia a descrição da colheita de uvas em Joel 3:13 e a volta a definir como um juízo que está centrado em Cristo.
“Então, saiu do santuário, que se encontra no céu, outro anjo, tendo ele mesmo também uma foice afiada. Saiu ainda do altar outro anjo, aquele que tem autoridade sobre o fogo, e falou em grande voz ao que tinha a foice afiada, dizendo: Toma a tua foice afiada e ajunta os cachos da videira da terra, porquanto as suas uvas estão amadurecidas! Então, o anjo passou a sua foice na terra, e vindimou a videira da terra, e lançou-a no grande lagar da cólera de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade, e correu sangue do lagar até aos freios dos cavalos, numa extensão de mil e seiscentos estádios”
A chave para revelar esta visão em clave é recuperar os antigos oráculos. A seguinte tabela revela um paralelo surpreendente de temas e imagens entre Joel 3 e
Apocalipse 14. Ambas as profecias contêm uma convocação divina a todas as nações para aparecer ante o tribunal de Deus (Joel 3:9-12; Apocalipse 14:6, 7). Ambas apresentam as acusações legais no pleito de Deus (Joel 3:2-6; Apocalipse 14:8). Ambas descrevem a liberação do povo do remanescente fiel sobre o monte Sião (Joel 2:32; 3:16; Apocalipse 14:1-5, 12). Ambas predizem a condenação dos inimigos perseguidores nos vales ao redor do monte Sião (Joel 3:2, 12; Apocalipse 14:20).
Podemos aprender três lições importantes deste progressivo desdobramento de Joel 3 em Apocalipse 14, lições que nos ensinam de que maneira o evangelho de Cristo estabelece o cumprimento do tempo do fim que Joel profetizou.
A) Primeiro, notamos que o Juiz já não é Jeová e sim o Messias Jesus. Como o Filho do Homem de Daniel 7:13 e 14, Cristo é o Rei (“coroa”) e o Juiz (a “foice”), quem executa os veredictos do tribunal celestial. Apocalipse 14:14 mostra o cumprimento cristológico do tempo do fim de Joel 3. O segundo advento de Cristo introduz o tempo da ceifa da terra.
B) Segundo, o remanescente fiel de Israel, reunido no monte Sião na cidade santa (Joel 2:32; 3:16), é redefinido pelos apóstolos como crentes no Senhor Jesus (ver Atos 2:21; 9:14, 21; Romanos 10:13) e em Apocalipse 14:1-5 como os seguidores do Cordeiro, a igreja fiel do tempo do fim, o que na ciência teológica se chama o cumprimento eclesiológico (de “igreja”, gr. ekklesia). O evangelho de Cristo tirou as restrições nacionais do povo do antigo pacto. A igreja de Jesus é uma comunidade de fé universal, a que Paulo chama “linhagem de Abraão” (Gálatas 3:26-29) e “o Israel de Deus” (6:16; cf. Hebreus 12:22-24).
C) Terceiro, o vale de Josafá ao redor do monte Sião em Joel 3:2, 12 e 14, em Apocalipse 14 se amplia a toda a terra. Esta extensão em escala mundial se mostra de modo inconfundível pela repetição intencional (6 vezes) do termo “a terra” (3 vezes para a ceifa da colheita e 3 vezes para a colheita de uvas, Apocalipse 14:15, 16, 18, 19).
Este aumento mundial do vale local de Joel se chama o cumprimento universal. João retém no Apocalipse a velha linguagem figurada da cidade de Sião do Oriente Médio (como em Hebreus 12:22-24), mas pelo evangelho desaparecem as restrições geográficas e étnicas. Tal é o efeito transformador do evangelho do novo pacto.2
O “grande lagar da ira de Deus” está situado explicitamente “fora da cidade” (Apocalipse 14:19, 20). Só pelo antecedente da descrição de Joel podemos saber, com certeza, que esta “cidade” de refúgio é a cidade santa onde o Deus de Israel libera a seus verdadeiros adoradores (ver Joel 2:32 e Apocalipse 14:1).
O lagar apocalíptico de Apocalipse 14 corresponde com o lagar de Joel 3 que o descreveu como “cheio, os seus compartimentos transbordam, porquanto a sua malícia é grande” (Joel 3:13). Joel já tinha dado ao lagar uma aplicação moral com respeito aos ímpios perseguidores que estavam sob o processo de acusação do Deus do pacto de Israel (3:2-6). Declarou-os amadurecidos para o juízo de Deus, e Joel apresenta a Jeová como o executor de seu veredicto:
“Congregarei todas as nações e as farei descer ao vale de Josafá [o nome significa “Jeová julga”]; e ali entrarei em juízo contra elas por causa do meu povo e da minha herança, Israel, a quem elas espalharam por entre os povos, repartindo a minha terra entre si” (Joel 3:2).
A acusação de Deus contra as nações foi a crueldade com que trataram a seu povo do pacto (Joel 3:3, 6). Não obstante, o objetivo final do juízo sobre os ímpios foi mais que uma exibição de justiça. Hans Walter Wolff comenta sobre Joel 3:17 “O reconhecimento de Jeová como o Deus do pacto de Israel é o objetivo final dos atos de Jeová com respeito ao mundo das nações”.3
A mesma alegação de crueldade contra o povo de Deus que aparece em Joel, renova-se no Apocalipse contra Babilônia (Apocalipse 16:5, 6; 17:6; 18:20, 24; 19:2), mas desta vez os santos são os seguidores do Cordeiro, e Cristo será seu vindicador e libertador (17:14; 19:11-21).
O pisar do lagar era um símbolo profético para ilustrar o juízo de condenação de Deus (ver Isaías 63:2-6; Jeremias 25:30, 33). Isaías comparou Edom e Israel a uma vinha que seria pisoteada pelo juízo de Deus (Isa. 5:1-7; ver também Salmo 80:8, 12, 13, 16). A visão de Apocalipse 14:14-20 está mais ampliada na visão da segunda vinda de Cristo em Apocalipse 19:11-21. Esta visão ampliada mostra como o Messias real pisará “o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-poderoso” (Apocalipse 19:15). Esta missão final de juízo que leva a cabo Cristo se descreve simbolicamente por sua roupa “tinta em sangue” (Apocalipse 19:13; cf. Isa. 63:3).
É instrutivo comparar as duas visões da segunda vinda de Cristo em Apocalipse 14:14-16 (sobre uma nuvem) e em 19:11-21 (sobre um cavalo branco). Evidentemente o ponto em questão destas visões não é apresentar um quadro fotográfico da segunda vinda a não ser ensinar uma verdade fundamental sobre o juízo: Cristo retornará para cumprir todas as profecias hebreias do juízo final e para separar aos que são seus filhos dos que têm que perecer.
Apocalipse 14 termina com a assombrosa declaração de que o sangue que sai do lagar “fora da cidade” chega “até os freios dos cavalos, por mil e seiscentos estádios” (Apocalipse 14:20). De novo, esta é uma linguagem simbólica hebraica com uma mensagem clara. A sabedoria requer uma compreensão do significado básico dos números apocalípticos. Assim como Apocalipse 14 começa com uma cifra (144.000), assim também termina com outra cifra (1.600). Ambas as passagens (vs. 1, 20) formam contrapartes simbólicas que descrevem destinos opostos para os justos e para os ímpios. O verdadeiro Israel está com o Cordeiro sobre o Monte Sião dentro da cidade de Deus, e os perseguidores ímpios estão reunidos fora da cidade. Dessa maneira, Apocalipse 14:1 e 20 amplia a linguagem figurada de Joel 2:32 e 3:1-16. Assim como a cifra 144.000 para o Israel espiritual revela seu significado teológico por meio de seu número chave, o 12, assim a cifra simbólica 1.600 revela seu significado por meio do número chave 4. “Quatro” simboliza os quatro ângulos da terra (ver Apocalipse 7:1; 20:8), os quatro limites da terra (Isaías 11:12), ou os quatro ventos ou direções da bússola (Mateus 24:31). A multiplicação do número 4 em Apocalipse 14:20 aponta exaustivamente ao território universal do campo de batalha, em harmonia com a predição do Jeremias: “E serão os mortos do Senhor, naquele dia, desde uma extremidade da terra até à outra” (Jeremias 25:33).
A importância primitiva da segunda vinda de Cristo, como a culminação da guerra mundial contra seus servos fiéis, amplifica-se nas visões ulteriores de Apocalipse 15 a 19. O desenvolvimento progressivo do “Armagedom” nos capítulos 16:13-16, 17:12-14 e 19:11-21, amplia a importância decisiva do poder salvífico e do poder consumidor da segunda vinda de Jesus Cristo. Voltando a extrair seus conceitos das descrições vívidas do idioma profético hebraico, a última visão que João teve do segundo advento descreve a Cristo vindo com um exército invencível do céu:
“E seguiam-no os exércitos que há no céu, montando cavalos brancos, com vestiduras de linho finíssimo, branco e puro. Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as nações; e ele mesmo as regerá com cetro de ferro e, pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso. Tem no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES” (Apocalipse 19:14-16).
Referências
A Bibliografia para Apocalipse 12-14 (caps. XXI-XXVIII deste livro) encontrará nas páginas 458-466.
1 J. M. Ford, Revelation, p. 250.
2 Para um estudo mais profundo do cumprimento territorial das promessas feitas ao Israel, ver Larondelle, O Israel de Deus na Profecia, cap. 9.
3 Wolff, Joel and Amos, p. 81 (o itálico é meu).