Siegfried J. Schwantes
Ao passo que o reconhecimento público do DEUS de Israel vem como clímax nas histórias dos cap. 2 e 3, no cap. 4 este reconhecimento aparece como o prólogo e o epílogo da experiência religiosa que descreve. Não há nada inerentemente incrível na história, apesar do silêncio das fontes babilônicas a respeito. As crônicas dos reis de Babilônia são muito incompletas. Os documentos publicados por D. J> Wiseman em 1956 cobrem apenas os primeiros 11 anos do reinado de Nabucodonozor. Mesmo um acontecimento tão importante como a conquista de Jerusalém, em 586, pelo exército de Nabucodonozor, não encontra confirmação em fontes babilônicas. Além disto os cronistas não costumam demorar-se sobre os vexames sofridos por seus patrões.
De outro lado a conversão de Amenofis IV do Egito à religião de Aton é bem atestada. O episódio todo foi um desvio insólito dos caminhos tradicionais do Egito, e é conhecido na história como a ‘Revolução de Amarna’. A experiência religiosa de Nabucodonozor descrita neste capítulo tem, pois, um paralelo notável. Além disto, há evidência nos textos dos profundos sentimentos religiosos de Nabucodonozor, como o hino seguinte ilustra:
O eterno príncipe!
Senhor de todo o ser!
Quanto ao rei a quem amas, e
Cujo nome tu proclamaste
Como te pareceu bem,
Guia sua vida com retidão,
Guia-o na vereda reta.
Sou o príncipe que te é obediente,
A criatura de tua mão;
Tu me criaste, e
Me confiaste com domínio
Sobre todo o povo.
Segundo tua graça, ó Senhor,
Que tu conferes a
Todos os povos,
Faze-me amar teu supremo domínio,
E cria em meu coração
A adoração de tua divindade,
E concede-me o que te for agradável,
Porque plasmaste minha vida.1
O tom religioso da proclamação real pode também ser explicada pela hipótese de que Daniel mesmo a compôs por ordem do rei. Afinal de contas, reis não costumam escrever seus próprios discursos. A mudança do pronome da primeira pessoa nos vv. 2-27 para a terceira pessoa nos vv.28-33, e de volta à primeira pessoa nos vv. 34-37, pode ser explicada se assume que Daniel adicionou algumas notas à proclamação. Seria mais apropriado para Daniel descrever a loucura do rei.
A saudação inicial, “paz vos seja multiplicada!” (v.1), encontra paralelos nos editos de reis persas posteriores (ver Esd. 4:17; 7:12). O prólogo em forma de hino resume a mensagem do livro todo, ‘O Seu reino é reino sempiterno, e o seu domínio de geração em geração’ (v.3). Aquilo que e permanente é posto em contraste com a glória transitória dos reinos deste mundo.
Depois desta doxologia, o rei continua contando como sua tranqüilidade foi perturbada por um sonho, e como de novo os sábios de Babilônia não foram capaz de interpretar o sonho. No final Daniel foi convocado, e nele somente o rei percebeu ‘o espírito dos deuses santos’. É impossível dizer se a palavra aramaica ‘elahin deve ser tomada como um plural de majestade e traduzida ‘DEUS’, ou como um simples plural. Theodotion em sua tradução grega do livro de Daniel leu, “o santo espírito de Deus”, no que foi seguido por muitos comentadores cristãos.
O título que o rei deu a Daniel no v. 9, ‘chefe dos magos’ é, sem dúvida, equivalente ao de ‘chefe supremo de todos os sábios de Babilônia’ do cap. 2:48. Na mente dos antigos a linha divisória separando as várias classes sob cuja sombra animais e aves achavam abrigo, e que provia alimento para todas as criaturas. Uma árvore semelhante é usada pelo profeta Ezequiel para descrever a magnificência do rei do Egito (Ez.31:3-9).
O termo vigilante no v.13 é usado só por Daniel. Corresponde ao aramaico ir derivado do verbo ur, ‘vigiar’. A Septuaginta traduz a palavra por aggelos, ‘anjo’.Que se trata de um ser celeste é claro no texto. A árvore possante é condenada a ser derrubada, mas não desarraigada de toda. Que a cepa devesse ser atada com cadeias de ferro e de bronze parece indicar continuidade da existência. Nenhum significado deve ser atribuído ao fato das cadeias serem de ferro e de bronze. São pormenores necessários para completar o quadro e nada mais.
Continuando a descrever o sonho o rei mesmo sugere uma interpretação parcial nos vv. 15b e 16. A árvore realmente representa um ser humano que deve sofrer a indignidade de ser sujeito a uma existência como a de um animal, possuindo a mentalidade de um animal.
Esta condição humilhante deveria durar sete tempos. A maior parte dos intérpretes toma o aram. iddan, ‘tempo’, como significando anos. A Septuaginta traduz a frase por ‘sete anos’.
O propósito da sentença decretada no concílio celeste é expressa no v. 17: “Afim de que conheçam os vivente que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer, e até ao mais humildes dos homens constitui sobre eles”. O seguinte comentário da pensa da inspira-ção vem a propósito: “o complicado jogo dos acontecimentos humanos está sob controle divino” e um “propósito dominante tem operado através dos séculos”. “A toda a nação… DEUS tem designado um lugar no Seu grande plano” e lhe tem dado a oportunidade de “preencher o propósito do Vigilante e Santo”.2
Qual seja este desígnio é claramente expresso pelo apóstolo Paulo em seu discurso diante do Areópago: “Para buscarem a DEUS se, porventura, tateando O possam achar” (At.17:27). Em Seu desígnio inescrutável DEUS pode colocar sobre uma nação “o mais humilde dos homens”. Nabopolassar, o pai de Nabucodonozor, foi “o filho de ninguém” como ele próprio afirma em uma de suas inscrições. Humildade de origem não é obstáculo que impeça um homem de tornar-se um poderoso instrumento no cumprimento do plano divino.
Este relato autobiográfico conta a seguir como após o fracasso dos sábios de Babilônia Daniel foi convidado a interpretar o sonho,pois nele habitava o Espírito de DEUS (v.18). Daniel aparentemente percebeu a interpretação ao ouvir a descrição do sonho, mas alarmado com as implicações ele hesitou falar. Somente depois de ser encorajado pelo rei é que ele procedeu a dar a interpretação. A árvore magnífica cuja fertilidade era uma bênção para todas as criaturas simbolizava o próprio rei (vv.20-22). A sentença para abater a árvore, mas deixar a cepa com as raízes na terra, significava que o rei seria banido do convívio humano e viveria como um anima por sete anos (vv.23-25), mas que ele seria restaurado afinal à sua dignidade real se reconhecesse que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens”. A humilhação que ameaçava o rei poderia ser evitada, se ele se arrependesse de seu orgulho desmensurado, e se usasse de misericórdia para com os opressos para que ele também alcançasse misericórdia. Daniel coloca-se na tradição dos profetas clássicos com sua preocupação com a conduta moral. O homem por sua conduta pode influenciar o curso dos eventos. Ele não é mero peão no tabuleiro da fatalidade. Como agente moral livre pode escolher servir a DEUS com humildade de coração ou recusar. Mas naturalmente tem de arcar com as conseqüências de sua escolha.
Há razão para supor que a seção seguinte (vv.28-33) foi redigida por Daniel mesmo. Se Nabucodonozor ficou impressionado com a interpretação do sonho e seu presságio sombrio, tudo indica que gradualmente expulsou a advertência de sua memória. Embora nenhuma data seja dada, aparentemente os acontecimentos descritos no capítulo ocorreram quando Nabucodonozor estava no auge do poder, quando a riqueza das nações conquistadas estavam sendo usadas para reconstruir Babilônia numa escala mais magnífica. A Septuaginta data este episodio do 18º ano do reinado de Nabucodonozor. A causa de seu orgulho é diretamente relacionada com as construções que empreendera e que devia impressionar seus contemporâneos com a glória de sua majestade. Apesar da advertência de Daniel o rei se deixou transportar pelo orgulho: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei.. com o meu grandioso poder…” (v.30).
Documentos desenterrados em Babilônia quase nada falam das campanhas militares de Nabucodonozor. Mas em diversas inscrições ele se ufana de seu esforço de fazer de Babilônia a maravilha do mundo. Eis um deles: “Em Babilônia, a cidade que prefiro, que amo, achava-se o palácio, a admiração do povo, o liame do país, o palácio brilhante, a habitação da majestade no solo de Babilônia”.3
Babilônia cuja importância como cidade remonta aos dias de Hamurabi, tinha sofrido consideravelmente em 689 a.C., quando o rei Senaqueribe da Assíria irritado pelas revoltas aí fomentadas a destruiu. Reconstruída por ordem de Esarhadon, sofreu de novo quando Assurbanipal tomou a cidade de assalto para sufocar uma revolução encabeçada por seu irmão Shamash-Shum-ukim. Havia muito dano a ser reparado e Nabucodonozor embarcou em seu programa de reconstrução com entusiasmo. Seu trabalho de reconstrução foi tão extenso que eclipsou todas as realizações anteriores. Tem-se dito que pouco podia ser visto que não tinha sido erigido em seus dias. Isto se aplica aos palácios, templos, muros, e até a área residencial”.4
Confirmando o provérbio, “o orgulho precede a queda” mal tinha o rei dado
expressão a sua soberba, quando sua razão apagou-se e ele perdeu o controle dos negócios do reino. Sua enfermidade tem sido diagnosticada como licantropia, que se caracteriza pelo fato que o paciente imagina ser um animal e age de acordo. Casos de uma tal enfermidade não eram desconhecidos na antiguidade. Um texto cuneiforme no museu britânico menciona um homem “que comia grama como um boi”.5
A moral da história é que o homem perde a razão quando se julga autônomo, e volta a razão quando reconhece a soberania divina. O v.34 diz que quando o rei levantou os olhos ao céu, voltou-lhe o entendimento. Em vez de se exaltar no orgulho vão, o rei agora atribui toda a honra ao Altíssimo, porque unicamente Seu domínio é um domínio eterno, e somente sua soberania está acima de contestação (v.34-35). À luz de sua experiência amarga, sua confissão de que “todos os moradores da terra são… reputados por nada” assume um significado pungente.
Se se pergunta porque Nabucodonozor não foi privado do trono definitivamente por causa de sua alienação mental, pode-se responder que outros reis afligidos de loucura retiveram suas prerrogativas enquanto viveram. O rei George III da Inglaterra (1738-1820) não foi deposto do trono por motivo de insanidade mental,6 nem foi o rei Otto da Baviera. Em caso de incapacidade do Monarca, regentes são designados para cuidar dos negócios do reino enquanto dura o impedimento.
Alguns comentaristas pensam ver uma incongruência nas palavras finais da proclamação real. Alega-se que o rei, apesar de sua confissão de fé, revela-se ainda muito vão e egocêntrico. Levando-se em consideração a cultura pagão do rei, pode-se lhe perdoar um resquício de egocentrismo. O reconhecimento de que todas as obras do Altíssimo e Seus caminhos justos, unido à declaração de que DEUS “pode humilhar os que andam na soberba”, constitui uma conclusão apropriada para a longa peregrinação espiritual de Nabucodonozor. Seus altos e baixos são típicos de toda a experiência humana.
Notas
- G.S. Goodspeed, A History of the Babylonian and Assyrian, p.348, cit. em Jack Finegan, Light from the Ancient East, p.225.PK 535, 536; Ed. 174, 178, 177.
- E. Schraeder, Keilinschriftliche Bibliothek, v.3, parte 2, p. 39, citado no SDABC IV. p.793.
- Ibid
- F. M. Th. de Ligrebohl, Opera Minora (1953), p. 527, citado no SDABC, IV. p.793.
- W. E. H. Lecky, A History of England in the Eighteenth Century, vol V (London, 1887), pp.96-147.