Marcos 16:9-20: original ou acréscimo?

por WILSON PAROSCHI

Fonte: Revista Adventista, Julho de 2008, págs. 12-15.

Veja o que os estudiosos pensam sobre os últimos versos desse evangelho.

A penúltima lição da Escola Sabatina do primeiro trimestre deste ano trouxe uma informação que deve ter deixado perplexos muitos membros. Eu mesmo fui procurado por várias pessoas solicitando esclarecimento sobre o assunto. A informação apareceu à página 154 da Edição do Professor. Em meio à discussão sobre a missão e a comissão nos evangelhos, particularmente em Marcos, o autor da lição remete o leitor para Marcos 16:14-20. O que se segue, porém, não é um desenvolvimento da ideia, mas um pequeno parágrafo que diz:

Marcos foi o primeiro dos evangelhos a ser escrito. Os mais antigos e mais confiáveis manuscritos gregos de Marcos concluem o livro de forma abrupta no versículo 8, suprimindo completamente os versículos 9-20. Alguns estudiosos acreditam que essa parte final consiste num acréscimo posterior. (Sendo assim, isso resolveria alguns dos problemas associados particularmente com o versículo 18, um texto que tem gerado algumas práticas religiosas incomuns.) [tradução revisada por este autor].

Não foi mesmo Marcos quem escreveu os últimos doze versículos de seu evangelho? Se não, quem o teria feito? Quando e por que isso teria sido feito? E como fica o uso desses versículos em sermões, estudos bíblicos, etc?

As escrituras cristãs – Ao afirmarem a divina inspiração das Escrituras, muitos se esquecem de que elas chegaram até nós por agentes humanos e mediante os canais da história. Assim como aconteceu com os livros do Antigo Testamento, as narrativas (evangelhos e Atos), as epístolas e o Apocalipse de nosso Novo Testamento foram moldados por penas gastas pelo uso e por mãos calejadas pelo trabalho. Eles foram escritos em papiros rústicos e frágeis, muitas vezes em situações ou ambientes adversos, como prisões (Efésios 6:20; Filipenses 1:7, 13; Colossenses 4:18; 2 Timóteo 2:9; Filemon 10, 13) ou ilhas desoladas usadas como colônias penais (Apocalipse 1:9). Os apóstolos e seus associados não eram escritores nem redatores profissionais. Alguns não passavam de humildes pescadores com pouca ou nenhuma habilidade literária e até mereciam ser chamados de “iletrados e incultos” (Atos 4:13). Esse certamente não era o caso de Lucas, que era médico (Colossenses 4:14), ou Paulo, que frequentara as melhores escolas rabínicas da época (Atos 22:3; Filipenses 3:5) e dominava diversos idiomas (Atos 21:37, 40; 22:2). O apóstolo, porém, sofria de grave deficiência visual (Atos 9:8; 2 Corintios 12:7-10; Gálatas 4:12-15; 6:11), o que o obrigava a buscar a ajuda de seus auxiliares evangelísticos na hora de redigir suas cartas (Romanos 16:22; I Coríntios 16:21; Colossenses 4:18; 2 Tessalonicenses 3:17; cf. I Pedro 5:12).

Uma vez escritos, os rolos contendo os livros sagrados tinham que ser levados ao seu destino por mãos humanas, muitas vezes por meio de estradas esburacadas e poeirentas ou navios sujos e fétidos. Tíquico, um dos auxiliares de Paulo e fiel irmão, foi quem levou as epístolas a Efésios (6:21 22), aos Colossenses (4:7-9) e possivelmente a Tito (3:12; cf. 2 Timóteo 4:12). Ao serem levados, os livros encontravam seu destino em congregações que, a princípio, não passavam de casas humildes e lotadas de irmãos fervorosos e ávidos por ler a Palavra (Romanos 16:15; I Coríntios 16:9; Colossenses 4:15; Filemon 2). Ali eles eram lidos e relidos, usados e manuseados até literalmente caírem aos pedaços. Antes que isso acontecesse, porém, muitos deles eram copiados para que pudessem continuar sendo usados e também enviados para novas congregações, à medida que elas iam sendo formadas. A igreja crescia muito naquelas primeiras décadas e grande era a necessidade de se copiar os escritos apostólicos para instrução e edificação dos novos membros. O próprio Paulo encorajava os destinatários de suas epístolas a providenciar para que outras congregações também pudessem lê-las (Colossenses 4:16).

E foi assim que o Novo Testamento foi transmitido através dos séculos até a invenção da imprensa: por meio de cópias manuais preparadas para suprir as necessidades da igreja. Nenhum dos originais sobreviveu, nem mesmo parcialmente. O que existe hoje são mais de 5.700 cópias manuscritas dos livros do Novo Testamento em sua língua original, o grego. Essas cópias, que são completas, parciais ou mesmo fragmentárias, encontram-se espalhadas por museus, bibliotecas, antigos mosteiros e igrejas do mundo cristão. É por meio desses manuscritos que podemos hoje estudar o texto do Novo Testamento e saber como ele foi transmitido nesses quase dois mil anos de existência da igreja. Existem manuscritos melhores e piores, dependendo da habilidade literária e do cuidado daqueles que os copiaram, bem como da forma de terem sido preservados. É também por meio desses manuscritos que podemos ter a certeza de que aquilo que lemos hoje em nosso Novo Testamento corresponde essencialmente ao que os apóstolos escreveram quase tantos séculos atrás.

O evangelho de Marcos – Ao que tudo indica, Marcos foi mesmo o primeiro evangelho a ser escrito. É até possível que ele tenha sido o primeiro livro do Novo Testamento a ser escrito, antes mesmo das epístolas de Paulo aos Tessalonicenses, que foram as primeiras cartas escritas pelo apóstolo. Ambas foram escritas da cidade de Corinto, por volta dos anos 51-52 d.C. Evidências de que Marcos foi o primeiro dos evangelhos a ser produzido são o seu tamanho e conteúdo. Marcos é o mais breve de todos os evangelhos e o único que praticamente não traz nenhum relato exclusivo sobre a vida e os ensinos de Jesus, ou seja, nenhum relato que os demais evangelhos também não o tragam. Ora, ninguém escreveria um evangelho tão curto se outros mais longos já estivessem disponíveis, ainda mais se ele fosse apenas repetir o que os outros já haviam dito. Temos que nos lembrar de que Jesus falara e fizera muitas outras coisas além daquelas que estão escritas (João 21:25), coisas essas que permaneciam vivas na memória da igreja e daqueles que haviam estado com Ele (Lucas 1:2). Tanto Mateus quanto Lucas e João trazem inúmeras informações e relatos não encontrados em Marcos. João, o último evangelho a ser escrito, é exatamente o mais diferente e original de todos. Ou seja, Marcos não seria realmente necessário se qualquer um dos outros evangelhos já tivesse sido escrito.

É bem possível que Marcos tenha escrito seu evangelho por volta do ano 50 d.C. Segundo a tradição da igreja, Marcos foi escrito em Roma, a partir de informações recebidas de Pedro (cf. I Pedro 5:13), visto que Marcos mesmo parece não ter estado pessoalmente com Jesus. Há quem pense que o jovem mencionado em Marcos 14:51-52 e que testemunhara a prisão de Jesus no Getsêmani seja o próprio evangelista, pois qual seria o propósito desse relato senão apresentar anonimamente algo que o autor mesmo presenciara? Seja como for, Marcos, ou João Marcos, não é mencionado no relato bíblico senão mais tarde, quando Jesus já não mais estava entre os apóstolos (Atos 12:12). Ele foi também um ativo companheiro de Paulo, principalmente depois de haver superado algumas dificuldades iniciais (Atos 13:5,13; 15:36-40; Colossenses 4:10; 2 Timóteo 4:11).

Como aconteceu com cada um dos livros neotestamentários, Marcos foi a princípio enviado para uma congregação específica, possivelmente na própria cidade de Roma, onde deve ter sido recebido como verdadeiro tesouro pelos membros locais, os quais certamente fizeram intenso uso dele. De imediato, como vários dos apóstolos ainda estavam vivos, não se julgou necessário fazer cópias do evangelho para enviá-las a outras congregações, pois as histórias sobre Jesus ainda eram bem conhecidas e preservadas na memória de muitos. Apenas as epístolas de Paulo, repletas de instrução ética e doutrinária, é que foram de imediato copiadas para que outros crentes tivessem acesso a elas (Colossenses 4:16; 2 Timóteo 4:13; 2 Pedro 3:15-16).

Os quatro evangelhos – Algum tempo mais tarde, por volta dos anos 60 e 70, Mateus e Lucas escreveram seus evangelhos. Isso coincidiu mais ou menos com a transição da primeira para a segunda geração de cristãos. Se Pedro foi executado em Roma no ano 67 a.C, por ordem do Imperador Nero, logicamente ele deve ter escrito sua segunda epístola pouco antes disso, e por essa epístola somos informados que a transição da geração daqueles que haviam estado com Jesus para a geração seguinte estava praticamente completa naquele exato momento (2 Pedro 3:3-4). Ou seja, ela deve ter ocorrido por volta da década de 60 a 70 d.C.

Mateus e Lucas, portanto, devem ter produzido seus evangelhos para atender às necessidades daqueles que não haviam conhecido Jesus pessoalmente (Lucas 1:1-4), principalmente, porque os próprios apóstolos já estavam indo para o descanso, um após outro. Considerando que esses dois evangelhos são muito mais completos e bem escritos que Marcos, o evangelho de Marcos deve ter sido um pouco ofuscado por eles e talvez até mesmo caído em desuso tanto na liturgia da igreja quanto na instrução dos fiéis. Na verdade, Mateus foi o evangelho que acabou sendo mais usado nas décadas finais do primeiro século. Isso é demonstrado por uma obra da igreja síria do início do segundo século, chamada Didaquê, a qual foi profundamente influenciada por Mateus. São inúmeras as citações de Mateus diretas e indiretas encontradas nessa obra.

Finalmente, quando João foi escrito já bem no fim do primeiro século (c. 90 a.C), surgiu a ideia de reunir os quatro evangelhos num único manuscrito para benefício da igreja. Não temos qualquer informação de quem fez isso nem de quando exatamente isso foi feito, mas sabemos que foi feito. As epístolas de Paulo já estavam reunidas e, então, chegara a vez dos evangelhos, e assim, pouco a pouco, o cânon do Novo Testamento começava a criar corpo.

Ao ser procurado para que fosse copiado e reunido com os demais evangelhos, é bem provável que o relato de Marcos estivesse mutilado, ou seja, que a parte final do livro se tivesse perdido, exatamente a parte correspondente ao capítulo 16:9-20. Essa mutilação pode ter sido totalmente acidental; basta nos lembrarmos de que as partes iniciais e finais de qualquer livro submetido a intenso manuseio são justamente as mais expostas ao desgaste.

É claro que ninguém haveria de suprimir de forma deliberada os últimos versículos do evangelho. Não havia, portanto, escolha: ou Marcos seria deixado de fora do cânon, ou ele seria copiado como estava.

Devemos ser gratos a Deus pela inclusão de Marcos, um evangelho que, mais do que qualquer outro, enfatiza a humanidade, a rejeição e o sofrimento de Jesus. É como se Marcos tivesse sido escrito à sombra da cruz, cuja imagem permeia todo o livro (3:6; 8:27-33, 34-38; 9:30-32, 35; 10:32-34,45).

Os manuscritos de Marcos – De todas as cópias gregas de Marcos que sobreviveram, não há nenhuma anterior ao quinto século que tenha Marcos 16:9-20. O mais antigo manuscrito que inclui esses versículos é o chamado Códice Alexandrino, do quinto século. Embora deixe um pouco a desejar em sua qualidade textual, ele se encontra exposto ao público numa redoma de vidro blindado e com temperatura controlada na Biblioteca Britânica, no centro de Londres. Além desses versículos estarem ausentes dos melhores e mais antigos manuscritos do evangelho, eles também não aparecem em algumas das primeiras traduções do Novo Testamento para as línguas siríaca e copta, faladas respectivamente nas regiões da Síria e Mesopotâmia e no Egito. Essas traduções surgiram entre a metade do segundo século e o início do terceiro. Também importantes escritores cristãos dos primeiros séculos, como Clemente de Roma (c. 96), Clemente de Alexandria (c. 150-215), Orígenes (c. 185-254), Cipriano (t 258), Cirilo de Jerusalém (c. 315-387), Atanásio (c. 296-373) e vários outros, em nenhum momento sequer revelam conhecer a existência desses versículos, apesar das inúmeras citações que fazem de Marcos.

Os escritores mais antigos que fazem referência a tais versículos são Irineu (c. 140-202) e Tertuliano (c. 160-225), ambos da Igreja Ocidental, além do Diatessaron, obra cristã produzida em Roma ou na Síria, na segunda metade do segundo século. Os escritores cristãos mais antigos que não conheceram esses versículos, portanto, são bem mais representativos que aqueles que os conheceram. No quarto século, Eusébio (c. 260-340), bispo de Cesaréia, declara que a passagem estava ausente dos melhores manuscritos de Marcos que ele conhecia, e que bem poucos eram os manuscritos que a continham. Jerônimo (c. 345-420), no início do quinto século, diz praticamente a mesma coisa.

Além disso, mesmo uma leitura superficial do capítulo 16 de Marcos mostra que a conexão entre o versículo 8 e os versículos 9-20 é bastante desajeitada. O versículo 8 está falando das mulheres, ao passo que o versículo 9 já passa presumivelmente a falar de Jesus, mas sem que Ele seja citado, nem mesmo de forma indireta. Em grego, tanto o nome “Jesus” quanto o pronome “Ele” estão ausentes do texto. E, por fim, como a própria lição da Escola Sabatina menciona, os versículos 17-18 parecem não condizer com o ensino de Jesus. A expulsão de demônios e a cura de enfermos da parte dos seguidores de Jesus não representam nenhum problema (Atos 3:1-10; 5:12-16; 16:16-18; 19:11-18), nem necessariamente o falar em línguas (Atos 2:5-6; 10:44-48; 19:5-7), embora Jesus mesmo nunca tenha dito explicitamente que os discípulos seriam capazes de fazê-lo, nem mesmo em Atos 1:8. Agora, o beber veneno e o pegar em serpentes sem que isso faça qualquer mal como sinal da fé em Jesus, isso não encontra nenhum respaldo ou paralelo em qualquer parte dos evangelhos ou do Novo Testamento como um todo.

Conclusão – Parece mesmo, que esses versículos não são originais de Marcos. Mas, como era, então, a conclusão original do evangelho? Infelizmente, não sabemos. Podemos afirmar apenas que o evangelho não terminava no versículo 8, pois é difícil crer que Marcos terminaria seu relato das “boas novas de Jesus Cristo” (Marcos 1:1) com a narração sombria das mulheres fugindo amendrontadas do túmulo de Jesus. De uma coisa, porém, podemos estar certos: a conclusão original de Marcos não era muito diferente da que encontramos em Mateus ou em Lucas, até porque todos eles narram a mesma história e em nenhum outro lugar de seu evangelho Marcos difere significativamente de Mateus e Lucas.

E quanto ao emprego desses versículos? Podemos usá-los mesmo sabendo que não foram escritos por Marcos? À exceção de Marcos 16:17, 18, todos os demais são perfeitamente evangélicos em seu conteúdo, mas precisamos ter em mente que eles foram acrescentados em algum momento no segundo século por algum copista ou líder eclesiástico insatisfeito com o desaparecimento da conclusão original do evangelho.

Há outros exemplos dessa natureza no Novo Testamento? Há poucos, mas nenhum que envolva uma passagem tão longa assim. Na maioria das vezes, o problema diz respeito a um versículo apenas, ou mesmo a umas poucas palavras dentro de um versículo. Algumas versões bíblicas costumam trazer a informação ao pé da página em que isso acontece. Geralmente, o texto suspeito aparece entre colchetes e então, uma nota de rodapé informa que tais palavras não aparecem nos melhores e mais antigos manuscritos. Nada, porém, que deva nos preocupar, que nos leve a duvidar das Escrituras ou a nos perdermos no caminho para o Céu. Como disse, há hoje mais de 5.700 manuscritos gregos do Novo Testamento e, entre outras coisas, eles demonstram que a Palavra de Deus, embora escrita e transmitida por agentes humanos, foi preservada de forma substancialmente pura e completa. Ela era e continua sendo as sagradas letras que podem tornar-nos sábios para a salvação pela fé em Cristo Jesus (2 Timóteo 3:15). Podemos estar absolutamente seguros disso.

Diz a Sra. White: “Alguns nos olham seriamente e dizem: Não acha que deve ter havido algum erro nos copistas ou da parte dos tradutores?’ Tudo isso é provável, e a mente que for tão estreita que hesite e tropece nessa possibilidade ou probabilidade, estaria igualmente pronta a tropeçar nos mistérios da Palavra Inspirada, porque sua mente fraca não pode ver através dos desígnios de Deus. […]. Mesmo todos os erros não causarão dificuldade a uma alma, nem farão tropeçar os pés de alguém que não fabrique dificuldades da mais simples verdade revelada” (Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 16).

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