Estes artigos foram traduzidos para o português, a partir do livro em francês “Lire Ellen White”, por Ruth Mª C. Alencar. Título do original em inglês, Reading Ellen White: How to Understand and Apply Her Writings (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1997, escrito pelo pastor George Knigh
“Nossa comunidade está quase dividida a propósito do uso das toalhas longas ou curtas no serviço da Santa Ceia. Pessoalmente, sou de acordo com o uso das toalhas curtas, mas alguns novos membros acham que existe desorganização quando empregamos as outras. Gostaria de saber quais toalhas irmã White usava.”
“Existe alguma coisa sobre este assunto em seus escritos? (Uma mulher acredita que há algo relacionado no livro Primeiros Escritos.) Finalmente, o uso de toalhas longas era comum no início da mensagem?” Assim escreveu R.Shaffer à Arthur L. White em novembro de 1933.
Esta carta mereceria estar classificada entre os clássicos do uso abusivo dos escritos de Ellen White. Primeiro, faz de um assunto sem importância bíblica uma maçã da discórdia. Depois, tenta resolver o problema fazendo apelo ao exemplo pessoal de Ellen White e à tradição adventista.
Talvez o mais impressionante desta carta, seja que tal congregação tenha novos membros como testemunhas de tal desordem. Para mim, pessoas com o mínimo de bom senso não entraria em tal igreja. E, no entanto, um número decepcionante de reuniões adventistas faz regularmente esse estado de “feiras de espetáculos”.
A resposta de Willie White à carta coloca o problema na sua justa perspectiva. Ele ressalta que todas as vezes que sua mãe “participou da lavagem dos pés, ela utilizou as toalhas colocadas à disposição pelas diaconisas da igreja sem comentário ou crítica. É minha opinião que ela considerava tal questão como de importância secundária.” (Willie C. White à R. Shaffer, 15 de dezembro de 1933).
Trata-se de uma teologia de periféricos. A carta sobre o tamanho das toalhas da comunhão é um exemplo típico da maneira como podemos colocar a ênfase sobre a “nova luz” do secundário. No entanto, para esta comunidade, tornou-se um problema central.
O que teria acontecido se Ellen White tivesse preferido uma toalha à outra? O que isto poderia significar para a Igreja? Nada! No máximo teríamos conhecido sua preferência pessoal. Um grande número de adventistas tem tido tendência a colocar Ellen White no lugar de Jesus. Ele é nosso modelo, não ela.
Colocar a vida de Ellen White em primeiro plano de nossa religião é idolatria e não cristianismo. Ellen White experimentou isto que digo. Assim, quando alguns líderes da igreja quiseram que seu exemplo fosse autoridade em matéria de reforma sanitária, ela declarou que se era assim, ela “não daria um tostão por sua reforma sanitária.” (Manuscrit 43ª, 1901). Ela afirma que as convicções deles deveriam ser postas sobre qualquer coisa mais sólida que sua vida pessoal.
O número de candidatos a levantar importância de ninharias da Bíblia é sem limites. A questão da barba é outro exemplo de argumentação adventista.
Um documento de meus arquivos porta por título: “Quarenta e uma razões bíblicas pelas quais os homens devem deixar a barba crescer.” Uma das mais impressionantes é que, segundo Mateus 10:30, Deus contou o número de cabelos de nossa cabeça. Por que seríamos tão arrogantes para cortar o que Deus toma conta ao ponto de contar?
Outro argumento adianta que Deus criou o homem barbudo e é então um ato culpável apagar a imagem de Deus ao se barbear. Ou ainda, um homem não deve portar o que porta uma mulher (Deuteronômio 22:5) e as mulheres são imberbes. No mesmo sentido, o artigo salienta que “os efeminados não entrarão no reino de Deus”. O ponto decisivo da argumentação no manuscrito, é que “o Cristo, nosso exemplo, tinha uma barba”. Outros adventistas ampliaram o assunto a tal ponto que eles colocaram sob o mesmo plano a marca da besta e o barbear.
“O barbear”, escreveu um advogado abstêmio em um documento intitulado O ano de 1940: outra chamada para a Igreja do resto “é um dos deuses deste mundo de hoje […] Quando vocês se barbeiam, não estão adorando a Deus, mas ao diabo. Ele tentou mudar o quarto mandamento. Agora, tenta modificar o primeiro. […] Quando você tenta progredir sob o poder da mão de Deus, e se barbeia, você faz uma grande confusão e terá que responder no futuro.”
James White tentou, a partir de 1857, desvendar o véu da fascinação pela qual os adventistas abordavam a questão do barbear. Ele escreveu: “Devemos pedir desculpas por ter mostrado um interesse qualquer pela questão ou ter discutido os méritos ou os deméritos na Review, pois não podemos considerar que se trata de uma questão bíblica. […] Recomendamos permanecer neutro (sobre a questão da barba) e a neutralidade na matéria hoje, é o silêncio.” (Review and Herald, 25 de Junho de 1857)
Mais é impossível ganhar com aqueles que estão preocupados com qualquer área da teologia dos periféricos. Um desses “santos” pretendeu mais tarde que James teria sido infeliz por ter permanecido neutro sobre a questão. Portanto, uma das barbas mais espinhosas, evidentemente votou contra o barbear. Tais argumentos especiais são um dos traços comuns dos que elaboram as teologias dos periféricos selecionando citações tendenciosas sobre um assunto ou outro e aplicando sua razão a “cortar os cabelos em quatro” do que eles respigaram.
Como era de se esperar, Ellen White estava de acordo com a posição do seu marido. Willie White escreveu em 1907 que, “quando os irmãos vieram falar com ela expressando suas graves preocupações sobre o assunto (a barba), ela declarou que seria melhor para eles que empregassem seu tempo e inteligência em questões mais importantes.” (Willie C. White à M. Hirst, 24 de fevereiro de 1907). Por várias vezes, Ellen White reconduziu às questões maiores da Escritura os que aumentavam pontos menores, em particular ao plano da salvação e à missão do povo de Deus. E foi também por questões doutrinárias.
Por exemplo, a discussão sobre a identidade do “contínuo” em Daniel 8, dividiu os líderes adventistas durante mais de dez anos. Embora alguns agitadores tenham se servido de suas declarações para sustentar seus pontos de vista, ela afirmou categoricamente que eles haviam se enganado de rota. “O inimigo de nossa obra se agrada quando um assunto de menor importância pode ser usado para desviar a mente de nossos irmãos, das grandes questões que devem constituir a preocupação de nossa mensagem.” Uma vez que não seja uma questão capital, exorto meus irmãos a não dar a vitória ao inimigo fazendo disto um caso de consciência. (Mensagens Escolhidas vol.1, 164-165)
Ela fez uma declaração parecida com relação ao debate sobre a natureza da lei na epístola aos Gálatas, que dividiu a Igreja nos anos 1880 e 1890. Não era para ela um problema importante, embora alguns líderes tenham se servido de seus escritos para dar amplitude à questão. Ela tomou uma posição parecida em uma das controvérsias teológicas mais decisivas do adventismo contemporâneo, esta da natureza humana de Cristo (uma vez mais, largamente apoiada por citações dos seus escritos). No fim da sua análise mais longa sobre o assunto, não somente ela advertiu sobre o perigo de querer tudo provar, mas foi até a dizer “Que existem questões que não são necessárias ao aperfeiçoamento da fé” (Lettre d’Ellen White, 8, 1895)
Em sua opinião, tem numerosas coisas claramente reveladas que estão no centro da fé e do ponto de salvação. É em direção a estes pontos que ela constantemente enviou seus leitores. Ela os aconselhava, sem cessar, para que se apegassem ao que é importante.
Assim, embora pudesse fazer comentários ao longo se seus conselhos à Igreja, sobre questões tais como as toalhas da santa ceia, a barba, ou a lei em Gálatas, para ela, estas questões não eram essenciais. Da mesma maneira, quando Jesus disse a seus ouvintes que todos os seus cabelos são contados (Mateus 10:30), sua intenção não era denunciar ou encorajar a barba, mas de exaltar o amor de Deus e o valor infinito de cada ser humano aos seus olhos. Jesus colocou constantemente a ênfase sobre as questões maiores da vida e procurou conduzir os Judeus de seu tempo a se ocuparem das coisas verdadeiramente essenciais da religião. Tomado em seu contexto mais amplo, Ellen White fez o mesmo.
Antes de concluir este assunto, devemos examinar outra questão. Saber se tudo o que Ellen White escreveu era inspirado. O que é isso? Poderiam perguntar alguns, se uma ideia ou um fato “não inspirado” encontra espaço em seus escritos? Essa questão é de uma importância particular, na medida em que Ellen White declarou ser conduzida por Deus em suas cartas e suas entrevistas, assim como no desenvolvimento de seus livros e de seus artigos. (ver Mensagens Escolhidas vol. 1, 50-51)
A resposta clássica a esta questão, é que Ellen White tratou de assuntos comuns e de assuntos sagrados. Ela não somente escreveu cartas familiares sobre os assuntos “comuns de todos os dias” (ver cartas 201, 202, 1903), como falou também de coisas banais em seus escritos endereçados a outras pessoas.
Por exemplo, em 1909, ela lembra uma experiência que ela fez com E.S. Ballenger, ancião responsável pelo sanatório de Paradise Valley, a propósito do número de quartos do estabelecimento. Ele declarou ter perdido a confiança nela porque ela havia dito “que o sanatório continha 40 quartos, quando ele tinha apenas 38”. Quando Ellen White expôs o caso de Ballenger, ela fez uma distinção entre o sagrado e o profano.
“A informação quanto ao número de quartos no Sanatório Vale do Paraíso foi dada, não como uma revelação vinda do Senhor, mas simplesmente como uma opinião humana. Nunca me foi revelado o número exato dos quartos de qualquer de nossos hospitais; e o conhecimento que tenho obtido dessas coisas, tive indagando dos que se esperava que soubessem. […]
Há vezes, porém, em que devem ser declaradas coisas comuns, pensamentos comuns precisam ocupar a mente, cartas comuns precisam ser escritas e informações dadas, as quais passaram de um a outro dos obreiros. Tais palavras, tais informações, não são dadas sob a inspiração especial do Espírito de Deus. São por vezes feitas perguntas que não dizem respeito absolutamente a assuntos religiosos, e estas perguntas precisam ser respondidas. Conversamos acerca de casas e terras, negócios a serem feitos, locais para nossas instituições, suas vantagens e desvantagens.
Recebo cartas solicitando conselhos acerca de assuntos estranhos, e aconselho segundo a luz que me tem sido comunicada.” (Mensagens escolhidas vol.1, 38-39)
Embora a distinção entre o sagrado e o profano tenha sido a posição tradicional sobre a questão de saber se tudo o que Ellen White escreveu é inspirado, alguns têm sugerido que Ellen White nunca foi capaz de fazer comunicações particulares ou pessoais sobre assuntos religiosos ou de assuntos com implicações religiosas. Esta sugestão levanta um importante debate com relação à Ellen White e os profetas da bíblia. Estavam eles totalmente invadidos por Deus a ponto de perder sua individualidade religiosa?
Esta questão nos traz à mente o caso do profeta Natã. Após ele haver dito a Davi que ele era o homem que construiria o templo, um mensageiro do Senhor o informa que não seria Davi, mas seu filho que o faria. (2 Samuel 7; 1 Crônicas 17:1-15)
Aqui está um caso particular no qual um profeta tomava uma posição sobre um ponto de vista religioso muito importante que provou ser nada mais que apenas a sua opinião. Tendo isto na mente, poderíamos nos perguntar se não era possível a Ellen White ter um ponto de vista pessoal sobre assuntos religiosos, que se tornaram conhecidos em suas cartas particulares a membros da família ou aos amigos. Dependendo de como as compilações temáticas são feitas, o que acontece se essa opinião finalmente é encontrada em um livro?
Tal situação não seria problemática ou mesmo enganosa? Talvez sim, talvez não. Depende da maneira como lemos Ellen White. Esta é a razão pela qual tenho dado tanto espaço nos dois últimos capítulos para a necessidade de dar maior ênfase sobre os grandes temas principais na leitura de documentos inspirados, e sobre o que é verdadeiramente importante do que sobre as declarações periféricas do pensamento dos porta-vozes de Deus.
Quem ler regularmente Ellen White percebe rapidamente que ela frequentemente tratou numerosos assuntos em contextos variados. Assim ela abordou em várias oportunidades, sob numerosas perspectivas os temas que a preocupavam. Tais repetições, que encontramos ao longo dos seus escritos, exprimem o centro de sua mensagem, diferentemente dos comentários obscuros e ocasionais que parecem estar distantes de suas preocupações. Se alguém se interessa pelo centro de sua mensagem e não pela periferia, as questões levantadas pela fina linha de demarcação entre o sagrado e o comum perdem sua importância. Jamais tais leitores estarão preocupados pelo que poderia ter sido pensado na zona intermediária que envolve tanto o sagrado como o comum.
Em resumo, a distinção tradicional entre o sagrado e o comum é útil. Mas me parece que além dessa distinção, é importante sublinhar os temas centrais e sempre repetidos do ministério redacional de Ellen White. Esta segunda regra nos impede de supervalorizar o que é marginal e nos ajuda a nos concentrarmos sobre o essencial de sua mensagem à Igreja.
Você pode ver todos os capítulos aqui