Por Ellen White
O Desejado de Todas as Nações
Este capítulo é baseado em Êxodo 23: 21; Levítico 10:6; Isaías 53: 7; Mateus 10: 32; 26: 41, 57 – 75; 27: 1; Marcos 14: 30, 53 – 72; 15: 1; Lucas 22: 31 e 32; 54 – 71; João 2: 19 e 21; 7: 51; 18:13 – 27; 19:30;
Através do ribeiro de Cedrom, de hortos, olivais e das silenciosas ruas da cidade adormecida, levaram precipitadamente a Jesus. Passava de meia-noite, e os gritos de vaia da turba que O seguia, irrompiam, agudos, no silêncio do espaço. O Salvador estava manietado e vigiado de perto, e movia-Se dolorosamente. Em ansiosa pressa, porém, marchavam com Ele os que O haviam prendido, rumo ao palácio de Anás, ex-sumo sacerdote.
Anás era o líder da família sacerdotal em exercício, e, em deferência para com sua idade, era reconhecido pelo povo como sumo sacerdote. Buscava-se e cumpria-se seu conselho como a voz de Deus. Ele devia ver primeiro a Jesus, cativo do poder sacerdotal. Devia estar presente ao interrogatório do Prisioneiro, por temor de que o menos experimentado Caifás deixasse de assegurar o objetivo porque trabalhavam. Seu artifício, astúcia e sutileza deviam ser empregados nessa ocasião; pois a condenação de Cristo devia de qualquer maneira ser conseguida.
Cristo devia ser julgado formalmente perante o Sinédrio; mas perante Anás foi submetido a um julgamento preliminar. Sob o governo romano, o Sinédrio não podia executar a sentença de morte. Só podia interrogar um prisioneiro, e dar a sentença para ser ratificada pelas autoridades romanas. Era, portanto, preciso apresentar contra Cristo acusações que fossem consideradas criminosas pelos romanos. Também era preciso achar uma acusação que O condenasse aos olhos dos judeus. Não poucos entre os sacerdotes e príncipes ficaram convencidos, pelos ensinos de Cristo; unicamente o temor da excomunhão os impedira de confessá-Lo. Os sacerdotes bem se lembravam da pergunta de Nicodemos: “Porventura condena a nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” João 7:51. Essa pergunta interrompera na ocasião o conselho, e estorvara-lhes os planos. José de Arimatéia e Nicodemos não foram então chamados, mas havia outros que talvez ousassem falar em favor da justiça. O julgamento devia ser dirigido de maneira a unir contra Cristo os membros do Sinédrio. Duas acusações desejavam os sacerdotes manter. Se se pudesse provar que Jesus era blasfemo, seria condenado pelos judeus. Se culpado de sedição, isso garantiria a condenação por parte dos romanos. A segunda acusação procurou Anás estabelecer em primeiro lugar. Interrogou a Cristo quanto a Seus discípulos e Suas doutrinas, esperando que o Prisioneiro dissesse qualquer coisa que lhe fornecesse base para agir. Pensava tirar alguma declaração, provando que Ele estava procurando fundar uma sociedade secreta, com o intuito de estabelecer um novo reino. Então os sacerdotes O poderiam entregar aos romanos como perturbador da paz e cabeça de insurreição.
Cristo lia claramente os desígnios do sacerdote. Como se lesse no mais íntimo da alma do que O interrogava, negou que houvesse entre Ele e Seus seguidores qualquer união secreta, ou que os reunisse em segredo e nas trevas para ocultar Seus desígnios. Não tinha segredos quanto a Seus intuitos ou doutrinas. “Eu falei abertamente ao mundo”, respondeu Ele; “Eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto”. João 18:20.
O Salvador punha em contraste Sua maneira de agir, com os métodos de Seus acusadores. Durante meses O perseguiram, procurando enlaçá-Lo e levá-Lo perante um tribunal secreto, onde poderiam obter por falso juramento o que era impossível conseguir por meios justos. Agora levavam a efeito seus desígnios. A prisão à meia-noite por meio de uma turba, as zombarias e maus-tratos antes de Ele ser condenado, ou sequer acusado, era a maneira de eles procederem, não a Sua. O ato que praticavam era uma violação da lei. Suas próprias leis declaravam que um homem devia ser tratado como inocente até se provar culpado. Em face de seus próprios regulamentos, eram os sacerdotes condenados.
Voltando-Se para aquele que O interrogava, disse Jesus: “Para que Me perguntas a Mim?” Não haviam os sacerdotes e príncipes enviado espias para Lhe observar os movimentos, e relatar cada palavra Sua? Não estiveram estes presentes em todas as reuniões do povo, levando aos sacerdotes informações de tudo quanto fazia e dizia? “Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei”, replicou Jesus; “eis que eles sabem o que Eu lhes tenho dito”. João 18:21.
Anás emudeceu diante da firmeza da resposta. Temendo que Jesus fizesse alguma alusão a seu procedimento, que ele preferia manter encoberto, nada mais Lhe disse nesse momento. Um de seus servidores, cheio de indignação ao ver Anás calar-se, bateu no rosto de Jesus, dizendo: “Assim respondes ao sumo sacerdote?”
Cristo replicou calmamente: “Se falei mal, dá testemunho do mal; e, se bem, por que Me feres?” João 18:22, 23. Não proferiu ardentes palavras de represália. Sua calma resposta proveio de um coração imaculado, paciente e brando, que não se irritava.
Cristo sofria vivamente sob maus-tratos e insultos. Nas mãos dos seres que criara, e pelos quais estava fazendo imenso sacrifício, recebeu toda espécie de opróbrios. E sofreu proporcionalmente à perfeição de Sua santidade e ao Seu ódio pelo pecado. Seu julgamento por homens que agiam como demônios era-Lhe um sacrifício sem fim. Achar-Se rodeado de criaturas humanas sob o domínio de Satanás, era-Lhe revoltante. E sabia que, num momento, por uma irradiação súbita de Seu divino poder, poderia reduzir a pó Seus cruéis atormentadores. Isso tornava a provação mais dura de sofrer.
Os judeus aguardavam um Messias que Se revelasse com demonstrações exteriores. Esperavam que Ele, por um raio de avassaladora vontade, mudasse a corrente dos pensamentos dos homens, forçando-os a reconhecer-Lhe a supremacia. Assim, acreditavam, devia Ele firmar a própria exaltação e satisfazer suas ambiciosas esperanças. Assim, quando Cristo era tratado com desprezo, sobrevinha-Lhe forte tentação de manifestar Seu caráter divino. Por uma palavra, um olhar, poderia compelir os perseguidores a confessar que era Senhor sobre reis e príncipes, sacerdotes e templo. Mas cumpria-Lhe a difícil tarefa de ater-Se à posição que escolhera como sendo um com a humanidade.
Os anjos do Céu testemunhavam todo movimento contra Seu amado Comandante. Ansiavam por libertar Cristo. Sob a direção divina os anjos são todo-poderosos. Uma ocasião, em obediência à ordem de Cristo mataram numa noite cento e oitenta e cinco mil homens do exército assírio. Quão facilmente poderiam os anjos, que contemplavam a vergonhosa cena do julgamento de Cristo, haver demonstrado sua indignação consumindo os adversários de Deus! Mas não eram mandados fazer isso. Aquele que poderia haver condenado Seus inimigos à morte, sofreu-lhes a crueldade. O amor para com o Pai, Seu compromisso, assumido desde a fundação do mundo, de tomar sobre Si o pecado, levaram-nO a suportar sem um queixume o rude tratamento daqueles que viera salvar. Era parte de Sua missão sofrer, em Sua humanidade, todos os motejos e abusos que sobre Ele fossem acumulados. A única esperança do homem residia nessa submissão de Cristo a tudo quando pudesse sofrer das mãos e do coração humano.
Nada dissera Cristo que pudesse dar ganho de causa a Seus acusadores; todavia, ligaram-nO, para significar que estava condenado. Cumpria, no entanto, haver uma simulação de justiça. Era necessário que houvesse a forma de um julgamento legal. Este as autoridades estavam decididas a apressar. Sabiam a consideração em que Jesus era tido pelo povo, e temiam que, fosse a prisão divulgada, talvez tentassem o libertamento. E ainda, se o julgamento e a execução não fossem efetuados imediatamente, haveria uma semana de adiamento em virtude da celebração da páscoa. Isso poderia frustrar-lhes os planos. Para assegurar a condenação de Jesus, muito dependiam do clamor da turba, composta em grande parte da escória de Jerusalém. Houvesse uma semana de delonga, e enfraqueceria a agitação, sendo possível surgir uma reação. A melhor parte do povo seria levantada a favor de Cristo; muitos se apresentariam com testemunhos em prol de Sua reivindicação, expondo as poderosas obras que fizera. Isso incitaria a indignação popular contra o Sinédrio. Seus processos seriam condenados, e Jesus posto em liberdade, para receber novas homenagens das multidões. Os sacerdotes e príncipes resolveram, pois, que, antes de seus desígnios serem conhecidos, Jesus fosse entregue nas mãos dos romanos.
Antes de tudo, porém, era preciso encontrar uma acusação. Até então nada haviam conseguido. Anás ordenou que Jesus fosse conduzido a Caifás. Este pertencia aos saduceus, alguns dos quais eram agora os mais furiosos inimigos de Jesus. Ele próprio, conquanto lhe faltasse força de caráter, era positivamente tão severo, sem coração e inescrupuloso como Anás. Não haveria meios que não empregasse para destruir a Jesus. Era então de manhã bem cedo, ainda muito escuro; à luz de tochas e lanternas, o armado bando, com o Prisioneiro, pôs-se a caminho para o palácio do sumo sacerdote. Ali, enquanto se reuniam os membros do Sinédrio, Anás e Caifás tornaram a interrogar Jesus, mas sem êxito.
Quando o conselho se ajuntara no tribunal, Caifás tomou seu lugar como presidente. De ambos os lados se achavam os juízes, e os que eram especialmente interessados no julgamento. Os soldados romanos estavam postados na plataforma abaixo do trono. Aos pés do mesmo, achava-Se Jesus. Sobre Ele se fixavam os olhares de toda a multidão. Intensa era a agitação. Ele só dentre a multidão estava calmo e sereno. A própria atmosfera que O rodeava parecia impregnada de santa influência.
Caifás considerava Jesus como rival. A ansiedade do povo por ouvir o Salvador, e sua aparente prontidão para Lhe aceitar os ensinos, suscitaram os terríveis ciúmes do sumo sacerdote. Contemplando agora, porém, o Prisioneiro, ele foi tomado de admiração pela nobreza e dignidade de Seu porte. Sobreveio-lhe a convicção de que esse homem tinha parentesco divino. Logo a seguir baniu desdenhosamente essa ideia. Sua voz se fez ouvir imediatamente em tons zombeteiros e altivos, exigindo que Jesus operasse diante deles um de Seus poderosos milagres. Mas suas palavras caíram aos ouvidos do Salvador como se as não tivera escutado. O povo comparava a conduta desperta e maligna de Anás e Caifás com a serena, majestosa atitude de Jesus. No próprio espírito daquela endurecida multidão, surgiu a pergunta: Terá esse homem de aspecto divino que ser condenado como criminoso?
Percebendo a influência que se estava exercendo, Caifás apressou o julgamento. Os inimigos de Jesus achavam-se em grande perplexidade. Estavam resolvidos a firmar Sua condenação, mas como consegui-lo, não o sabiam. Os membros do conselho estavam divididos entre fariseus e saduceus. Renhida animosidade e contenda reinava entre eles; não ousavam abordar certos pontos disputados, por temor de briga. Com poucas palavras poderia Cristo haver despertado os preconceitos de uns contra os outros, e teria assim desviado de Si a ira deles. Bem o sabia Caifás, e desejava evitar uma contenda. Havia numerosas testemunhas para provar que Cristo acusara os sacerdotes e escribas, que lhes chamara hipócritas e homicidas; mas esse testemunho, não era conveniente apresentar. Em suas cortantes disputas contra os fariseus, haviam-se os saduceus servido de idêntica linguagem. E tal testemunho não teria nenhuma força diante dos romanos, que estavam eles mesmos desgostosos com as pretensões dos fariseus. Havia abundantes provas de que Jesus desprezara a tradição dos judeus, e falara irreverentemente de muitas de suas ordenanças; mas quanto às tradições, fariseus e saduceus estavam de arma em riste entre si; e também essa prova nenhum peso teria quanto aos romanos. Os inimigos de Cristo não ousavam acusá-Lo de transgressor do sábado, para que um exame não revelasse o caráter de Sua obra. Fossem Seus milagres de cura trazidos à luz, e estaria derrotado o objetivo dos sacerdotes.
Subornaram-se falsas testemunhas para acusarem a Jesus de incitar rebelião e buscar estabelecer um governo separado. Mas seus testemunhos se demonstraram vagos e contraditórios. Ao serem interrogados, falsearam suas próprias declarações.
No princípio de Seu ministério, dissera Cristo: “Derribai este templo, e em três dias o levantarei.” Na figurada linguagem da profecia, predissera assim Sua própria morte e ressurreição. “Ele falava do templo de Seu corpo”. João 2:19, 21. Essas palavras compreenderam os judeus em seu sentido literal, como se referindo ao templo de Jerusalém. De tudo quanto Cristo dissera, não podiam os sacerdotes encontrar nada de que se servir contra Ele, a não ser isso. Torcendo essas palavras, esperavam tomar vantagem. Os romanos tinham-se empenhado em reconstruir e embelezar o templo, e dele muito se orgulhavam; qualquer desprezo a ele manifestado, incitar-lhes-ia certamente a indignação. Nisso tanto romanos como judeus, fariseus e saduceus estavam em harmonia; pois todos tinham o templo em grande veneração. A esse respeito, encontraram-se duas testemunhas cuja declaração não era contraditória como as das outras. Uma delas, que fora subornada para acusar Jesus, declarou: “Este disse: Eu posso derribar o templo de Deus e reedificá-lo em três dias.” Assim eram desfiguradas as palavras de Cristo. Se fossem relatadas tais quais Ele as proferira, não teriam eles conseguido Sua condenação, nem mesmo por meio do Sinédrio. Fosse Jesus um simples homem, como os judeus pretendiam, Sua declaração haveria apenas indicado um espírito irrazoável, jactancioso, mas não poderia ter sido considerada blasfêmia. Mesmo torcidas pelas falsas testemunhas, essas palavras nada continham que pudesse ser olhado pelos romanos como crime digno de morte.
Pacientemente escutava Jesus os contraditórios testemunhos. Nem uma palavra proferia em defesa própria. Por fim os acusadores viram-se emaranhados, confusos e enfurecidos. O julgamento não avançava: dir-se-ia que suas tramas iam fracassar. Caifás estava desesperado. Restava um único recurso; Cristo devia ser forçado a condenar a Si mesmo. O sumo sacerdote ergueu-se da cadeira de juiz, fisionomia transtornada pela paixão, indicando pela voz e as maneiras que, estivesse em seu poder, e abateria o Preso que se achava diante dele. “Não respondes coisa alguma ao que estes depõem contra Ti?” (Mateus 26:62) exclamou.
Jesus guardou silêncio. “Ele foi oprimido, mas não abriu a Sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e, como a ovelha muda perante os Seus tosquiadores, Ele não abriu a Sua boca”. Isaías 53:7.
Por fim Caifás, erguendo para o Céu a mão direita, dirigiu-se a Jesus na forma de um solene juramento: “Conjuro-Te pelo Deus vivo que nos digas se Tu és o Cristo, o Filho de Deus”. Mateus 26:63.
Em face desse apelo não podia Cristo permanecer silencioso. Havia tempo de ficar mudo e tempo de falar. Não falara antes que fosse diretamente interrogado. Sabia que responder agora era tornar certa Sua morte. Mas o apelo era feito pela mais alta autoridade reconhecida da nação, e em nome do Altíssimo. Cristo não deixaria de mostrar o devido respeito pela lei. Mais ainda, Sua própria relação para com o Pai era invocada. Precisa declarar plenamente Seu caráter e missão. Dissera aos discípulos: “Qualquer que Me confessar diante dos homens, Eu o confessarei diante de Meu Pai, que está nos Céus”. Mateus 10:32. Agora, pelo próprio exemplo, repetiu a lição.
Todos os ouvidos se inclinaram para escutar, e todos os olhos se fixaram em Seu rosto, ao responder: “Tu o disseste.” Uma luz celeste parecia iluminar-Lhe o pálido semblante, ao acrescentar: “Digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu”. Mateus 26:64.
Por um momento a divindade de Cristo irrompeu através do invólucro humano. O sumo sacerdote recuou diante do penetrante olhar do Salvador. Aquele olhar parecia ler-lhe os pensamentos ocultos, e arder-lhe no coração. Nunca, no resto de sua vida, esqueceu aquele perscrutador olhar do perseguido Filho de Deus.
“Vereis em breve”, disse Jesus, “o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu.” Nessas palavras, apresentou Cristo o reverso da cena que então ocorria. Ele, o Senhor da vida e da glória, estaria sentado à destra de Deus. Seria o juiz de toda a Terra, e de Suas decisões não haveria apelação. Então tudo que estava oculto seria trazido à luz da presença divina, e o juízo feito sobre cada homem segundo as suas obras.
As palavras de Cristo sobressaltaram o sumo sacerdote. A ideia de que haveria uma ressurreição de mortos, quando todos se achariam diante do tribunal de Deus, para ser recompensados segundo as suas obras, era um pensamento aterrador para Caifás. Ele não desejava crer que, no futuro, receberia sentença segundo as suas ações. Acudiram-lhe à mente, como um panorama, as cenas do juízo final. Por um momento viu o terrível espetáculo das sepulturas dando os seus mortos, com os segredos que eles esperavam estarem para sempre ocultos. Sentiu-se por um momento como à presença do eterno Juiz, cujo olhar, que vê todas as coisas, estava a ler-lhe a alma, trazendo à luz mistérios que supunha ocultos com os mortos.
A cena desapareceu da visão do sacerdote. As palavras de Cristo o espicaçavam vivamente, a ele, o saduceu. Caifás negara a doutrina da ressurreição, do juízo e da vida futura. Ficou então enlouquecido por uma fúria satânica. Esse Homem, um preso diante dele, havia de atacar suas mais acariciadas teorias? Rasgando os vestidos, para que o povo visse o pretenso horror que experimentava, exigiu que, sem posteriores preliminares, fosse o Preso condenado por blasfêmia. “Para que precisamos ainda de testemunhas?” disse ele; “Eis que bem ouvistes agora a Sua blasfêmia. Que vos parece?” Mateus 26:65, 66. E todos O condenaram.
A convicção, de mistura com a paixão, levou Caifás a agir como fez. Estava furioso consigo mesmo por crer nas palavras de Cristo e, em lugar de rasgar o coração sob um profundo sentimento da verdade e confessar ser Jesus o Messias, rasgou as vestes sacerdotais, em decidida resistência. Esse ato era de profunda significação. Mal compreendia Caifás o seu sentido. Nesse ato, realizado para influenciar os juízes e garantir a condenação de Cristo, condenara o sumo sacerdote a si mesmo. Pela lei divina estava desqualificado para o sacerdócio. Proferira sobre si mesmo a sentença de morte.
O sumo sacerdote não devia rasgar as vestes. Pela lei levítica, isto era proibido sob pena de morte. Em circunstância alguma, em nenhuma ocasião, devia o sacerdote rasgar os vestidos. Era costume entre os judeus rasgar as vestes por morte de amigos, mas esse costume não deviam os sacerdotes observar. Por Cristo fora dada a Moisés ordem expressa sobre isto. Levítico 10:6.
Tudo que era usado pelo sacerdote devia ser de uma só peça, e isento de defeito. Por aquelas belas vestes oficiais estava representado o caráter do grande protótipo, Jesus Cristo. Nada senão a perfeição, no vestuário e na atitude, na palavra e no espírito, podia ser aceitável a Deus. Ele é santo, e Sua glória e perfeição devem ser representadas pelo serviço terrestre. Coisa alguma senão a perfeição poderia representar devidamente a santidade do serviço celestial. Os homens finitos poderiam rasgar o próprio coração, mostrando espírito arrependido e humilde. Isso seria distinguido por Deus. Mas nenhum rasgão deveria ser feito no vestido sacerdotal, pois isso mancharia a representação das coisas celestiais. O sumo sacerdote que ousasse apresentar-se em sagrado ofício e empenhar-se no serviço do santuário, com as vestes rasgadas, era considerado como se tendo separado de Deus. Rasgando-as, excluíra a si mesmo de ser um personagem representativo. Não mais era aceito por Deus como sacerdote, em ofício. Essa maneira de agir de Caifás mostrava a paixão humana, a humana imperfeição.
Rasgando as vestes, tornou Caifás de nenhum efeito a lei divina, para seguir a tradição dos homens. Uma lei de feitura humana estipulava que, em caso de blasfêmia, podia o sacerdote rasgar o vestido em horror pelo pecado, e ficar sem culpa. Assim era a lei divina anulada pelas dos homens.
Cada ato do sumo sacerdote era observado com interesse pelo povo; e Caifás pensou causar efeito exibindo sua piedade. Nesse ato, porém, destinado a servir de acusação a Cristo, estava ultrajando Aquele de quem Deus dissera: “O Meu nome está nEle”. Êxodo 23:21. Ele próprio estava blasfemando. Achando-se sob a condenação de Deus, proferiu sentença contra Cristo como blasfemo.
Quando Caifás rasgou as vestes, esse ato significou o lugar que, para com Deus, os judeus ocupariam daí em diante, como nação. O povo outrora favorecido por Deus estava-se separando dEle, e se tornando rapidamente um povo rejeitado por Deus. Quando, sobre a cruz, Cristo exclamou: “Está consumado” (João 19:30), e o véu do templo se rasgou em dois, o Santo Vigia declarou que o povo judeu rejeitara Aquele que era o protótipo de todos os seus tipos, a substância de todas as suas sombras. Israel se divorciara de Deus. Bem podia então Caifás rasgar as vestes oficiais, que indicavam pretender ele ser representante do grande Sumo Sacerdote; pois não mais tinham elas qualquer significação para ele ou para o povo. Bem podia o sumo sacerdote rasgar as vestes em horror por si mesmo e pela nação.
O Sinédrio declarara Jesus digno de morte; mas era contrário à nação judaica julgar um preso de noite. Numa condenação legal, coisa alguma se poderia fazer senão à luz do dia, e em plena sessão do conselho. Não obstante, o Salvador foi tratado então como criminoso condenado, e entregue para ser maltratado pelos mais baixos e vis da espécie humana. O palácio do sumo sacerdote circundava um pátio aberto, onde se haviam reunido os soldados e a multidão. Através desse pátio foi Jesus levado para a sala da guarda, encontrando de todo lado zombarias por Sua declaração de ser o Filho de Deus. Suas próprias palavras: “assentado à direita do Poder”, “vindo sobre as nuvens do céu” (Mateus 26:64), eram escarnecedoramente repetidas. Enquanto Se achava na sala da guarda, esperando Seu julgamento legal, não foi protegido. A plebe ignorante vira a crueldade com que Ele fora tratado perante o concílio, aproveitando-se assim para manifestar todos os satânicos elementos de sua natureza. A própria nobreza e divindade de Cristo os provocara à fúria. Sua mansidão, inocência e paciência majestosas enchiam-nos de um ódio de satânica origem. A misericórdia e a justiça foram calcadas a pés. Nunca foi um criminoso tratado tão desumanamente como o foi o Filho de Deus.
Mais viva angústia, no entanto, dilacerou o coração de Jesus; o golpe que mais profunda dor Lhe infligiu, não o poderia vibrar mão alguma inimiga. Enquanto Ele suportava, perante Caifás, a farsa de um julgamento, fora negado por um dos discípulos.
Depois de abandonarem o Mestre no horto, dois dos discípulos ousaram seguir, a distância, a turba que levara Jesus preso. Esses discípulos eram Pedro e João. Os sacerdotes reconheceram João como bem conhecido discípulo de Jesus, e deram-lhe entrada na sala, esperando que, ao testemunhar a humilhação de seu guia, desdenharia ele a ideia de ser uma pessoa assim o Filho de Deus. João falou em favor de Pedro, conseguindo entrada para ele também.
No pátio fora feito um fogo; pois era a hora mais fria da noite, mesmo antes do amanhecer. Um grupo estava reunido perto do fogo, e Pedro tomou presunçosamente lugar no mesmo. Não desejava ser reconhecido como discípulo de Cristo. Misturando-se descuidosamente com a multidão, esperava ser tomado por algum dos que levaram Jesus para a sala.
Ao incidir, porém, a luz no rosto de Pedro, a porteira lançou-lhe um penetrante olhar. Notara que ele tinha entrado com João, observara-lhe na fisionomia o abatimento e pensou que poderia ser um discípulo de Cristo. Ela era uma das servas da casa de Caifás, e estava curiosa. Disse a Pedro: “Não és também um dos Seus discípulos?” Pedro sobressaltou-se e ficou confuso; instantaneamente se fixaram nele os olhares do grupo. Fingiu não a compreender, mas ela insistiu e disse aos que a rodeavam que esse homem estava com Jesus. Pedro sentiu-se forçado a replicar e disse, zangado: “Mulher, não O conheço”. Lucas 22:57. Foi a primeira negação, e imediatamente o galo cantou.
Ó! Pedro tão depressa envergonhado de teu Mestre! tão pronto a negar a teu Senhor!
O discípulo João, entrando na sala do julgamento, não buscou ocultar ser seguidor de Jesus. Não se misturou com o rude grupo que estava injuriando o Mestre. Não foi interrogado; pois não assumiu um falso caráter, tornando-se assim objeto de suspeita. Procurou um canto retirado, ao abrigo dos olhares da multidão, mas o mais próximo possível de Jesus. Ali podia ver e ouvir tudo que ocorresse no julgamento de seu Senhor.
Pedro não pretendia dar a conhecer sua verdadeira identidade. Ao assumir ar de indiferença, colocara-se no terreno do inimigo, tornando-se fácil presa da tentação. Houvesse ele sido chamado a combater por seu Mestre, e teria sido um corajoso soldado; ao ser, porém, apontado pelo dedo do escárnio, demonstrou-se covarde. Muitos que não recuam diante da luta ativa por seu Senhor, são, em face do ridículo, levados a negar sua fé. Associando-se com aqueles a quem deviam evitar, colocam-se no caminho da tentação. Convidam o inimigo a tentá-los, e são levados a dizer e fazer coisas de que, sob outras circunstâncias, nunca se tornariam culpados. O discípulo de Cristo que, em nossos dias, disfarça sua fé por temor de sofrimento ou ignomínia, nega a seu Senhor tão realmente como o fez Pedro na sala do julgamento.
Pedro procurou não manifestar interesse no julgamento do Mestre, mas tinha o coração confrangido de dor ao ouvir as cruéis zombarias e ver os maus-tratos que Ele estava sofrendo. Mais ainda, estava surpreendido e irritado de que Jesus assim Se humilhasse a Si e a Seus seguidores, submetendo-Se a esse tratamento. A fim de ocultar o que na verdade sentia, procurou unir-se aos perseguidores de Jesus em seus intempestivos gracejos. Seu aspecto, no entanto, não era natural. Estava representando uma mentira, e conquanto procurasse falar despreocupadamente, não podia suster expressões de indignação ante os abusos acumulados contra o Mestre.
Pela segunda vez foi a atenção chamada para ele, sendo novamente acusado de ser seguidor de Jesus. Declarou então, com juramento: “Não conheço tal homem.” Outra oportunidade lhe foi dada ainda. Passara-se uma hora, quando um dos servos do sumo sacerdote, sendo parente próximo do homem cuja orelha Pedro cortara, lhe perguntou: “Não te vi eu no horto com Ele?” “Também este verdadeiramente estava com Ele, pois também é galileu.” “Tua fala te denuncia.” Diante disso Pedro se exaltou. Os discípulos de Jesus eram notados pela pureza da linguagem, e para enganar bem a seus interlocutores e justificar o aspecto que assumira, Pedro negou então ao Mestre com imprecação e juramento. Novamente o galo cantou. Pedro o ouviu então e lembrou as palavras de Jesus: “Antes que o galo cante duas vezes, três vezes Me negarás”. Marcos 14:30.
Quando os degradantes juramentos acabavam de sair dos lábios de Pedro e o penetrante canto do galo lhe ressoava ainda no ouvido, o Salvador voltou-Se dos severos juízes, olhando em cheio ao pobre discípulo. Ao mesmo tempo os olhos de Pedro eram atraídos para o Mestre. Naquele suave semblante leu ele profunda piedade e tristeza; nenhuma irritação, porém, se via ali.
A vista daquele rosto pálido e sofredor, daqueles trêmulos lábios, daquele olhar compassivo e cheio de perdão, penetrou-lhe a alma como uma seta. Despertou-se a consciência. Ativou-se a memória. Pedro recordou sua promessa de poucas horas antes, de que havia de ir com seu Senhor à prisão e à morte. Lembrou-se de seu desgosto quando, no cenáculo, Ele lhe dissera que havia de negar seu Senhor três vezes naquela noite. Pedro acabava mesmo de declarar que não conhecia a Jesus, mas compreendia agora com amarga dor quão bem o Senhor o conhecia e quão exatamente lhe lera o coração, cuja falsidade nem ele próprio conhecia.
Acudiram-lhe recordações em tropel. A terna misericórdia do Salvador, Sua bondade e longanimidade, Sua brandura e paciência para com os errantes discípulos — tudo lhe veio à memória. Lembrou a advertência: “Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça”. Lucas 23:31, 32. Refletiu com horror em sua própria ingratidão, falsidade, perjúrio. Olhou uma vez mais para o Mestre, e viu sacrílega mão levantada para Lhe bater na face. Incapaz de suportar por mais tempo a cena, precipitou-se, coração quebrantado, para fora da sala.
E avançou, pela solidão e a treva, sem saber nem cuidar para onde. Encontrou-se, enfim, no Getsêmani. A cena de poucas horas antes acudiu-lhe vivamente à memória. O rosto sofredor de Jesus, manchado de sanguinolento suor e convulsionado pela agonia, surgiu diante dele. Lembrou-se com atroz remorso que Ele chorara e Se angustiara sozinho em oração, ao passo que os que se Lhe deviam ter unido naquela probante hora estavam adormecidos. Lembrou-Lhe a solene recomendação: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação”. Mateus 26:41. Testemunhou novamente a cena na sala do julgamento. Foi-lhe tortura ao coração a sangrar, saber que ajuntara o maior peso à humilhação e pesar do Salvador. No próprio lugar em que Jesus derramara a alma em agonia perante o Pai, Pedro caiu sobre o rosto e desejou morrer.
Fora por dormir quando Jesus lhe recomendara vigiar e orar, que Pedro preparara o caminho para seu grande pecado. Todos os discípulos, dormindo na hora crítica, sofreram grande dano. Cristo sabia a cruel prova porque eles haviam de passar. Sabia como Satanás havia de agir para lhes paralisar os sentidos, a fim de se acharem desapercebidos para a prova. Fora por isso que lhes dera aviso. Houvessem aquelas horas no horto sido passadas em vigília e oração, e Pedro não teria ficado dependente de suas débeis forças. Não teria negado a seu Senhor. Houvessem os discípulos velado com Cristo em Sua agonia, e estariam preparados para Lhe contemplar os sofrimentos na cruz. Teriam compreendido, até certo ponto, a natureza de Sua avassaladora angústia. Teriam podido recordar-Lhe as palavras predizendo os sofrimentos, a morte e a ressurreição. Entre as sombras da mais probante hora, alguns raios de esperança teriam aclarado as trevas e lhes sustido a fé.
Assim que se fez dia, o Sinédrio tornou a reunir-se, e outra vez foi Jesus levado à sala do conselho. Declarara-Se Filho de Deus, e tinham feito Suas palavras uma acusação contra Ele. Mas não O podiam condenar por isso, pois muitos deles não se achavam presentes à sessão da noite, e não Lhe tinham ouvido as palavras. E sabiam que o tribunal romano não veria nelas coisa alguma digna de morte. Mas se eles todos Lhe pudessem ouvir dos próprios lábios repetidas aquelas palavras, talvez conseguissem seu objetivo. Sua reivindicação ao messiado, poderiam interpretar como pretensão política, sediciosa.
“És Tu o Cristo?” perguntaram, “dize-no-lo.” Mas Cristo permaneceu silencioso. Continuaram a importuná-Lo com perguntas. Por fim, com doloroso, comovedor acento, respondeu: “Se vo-lo disser, não o crereis; e também, se vos perguntar não Me respondereis, nem Me soltareis.” Mas para que ficassem sem desculpa, ajuntou a solene advertência: “Desde agora o Filho do homem Se assentará à direita do poder de Deus.”
“Logo, és Tu o Filho de Deus?” perguntaram todos a uma voz. Disse-lhes Ele: “Vós dizeis que Eu sou.” Exclamaram: “De que mais testemunho necessitamos? Pois nós mesmos o ouvimos de Sua boca”. Lucas 22:67-71.
E assim, pela terceira condenação das autoridades judaicas, Jesus devia morrer. Tudo quanto se fazia então necessário, pensavam, era que os romanos ratificassem a condenação, e Lho entregassem nas mãos.
Ocorreu então a terceira cena de maus-tratos e zombaria, pior ainda do que a que fora recebida da plebe ignorante. Fez-se isso na própria presença dos sacerdotes e principais, e com a sanção deles. Todo sentimento de simpatia humana lhes desaparecera do coração. Se eram francos os seus argumentos e não Lhe conseguiam abafar a voz, tinham outras armas, as mesmas usadas em todos os séculos para fazer calar os hereges — sofrimentos, violência e morte.
Ao ser proferida pelos juízes a condenação de Jesus, uma fúria satânica apoderou-se do povo. Os gritos assemelhavam-se ao rugido de feras. A multidão precipitou-se para Jesus, bradando: É culpado, seja morto! Não fossem os soldados romanos, e Jesus não teria vivido para ser pregado na cruz do Calvário. Teria sido despedaçado perante os juízes, não houvesse a autoridade romana interferido, restringindo, pela força das armas, a violência da turba.
Pagãos indignaram-se ante o brutal tratamento infligido a uma pessoa contra quem coisa alguma fora provada. Os oficiais romanos declararam que os judeus, sentenciando a Jesus, estavam infringindo o poder romano, e que era mesmo contra a lei judaica condenar um homem sobre seu próprio testemunho. Essa intervenção produziu momentâneo amainar nos acontecimentos; mas os guias judeus estavam mortos tanto para a piedade como para a vergonha.
Os sacerdotes e os principais esqueceram a dignidade de seu cargo, e maltrataram o Filho de Deus com vis epítetos. Escarneceram dEle por causa de Sua filiação. Declararam que Sua presunção em Se proclamar o Messias, tornava-O merecedor da mais ignominiosa morte. Os mais dissolutos homens empenharam-se em infames maus-tratos contra o Salvador. Foi-Lhe jogado à cabeça um pano velho, e Seus perseguidores batiam-Lhe no rosto, dizendo: “Profetiza-nos, Cristo, quem é o que Te bateu?” Lucas 22:64. Ao ser tirado o pano, um pobre infeliz cuspiu-Lhe no rosto.
Os anjos de Deus registraram fielmente todo insultuoso olhar, palavra e ato contra seu bem-amado Comandante. Um dia, os homens vis que zombaram de Cristo e Lhe cuspiram no pálido e sereno rosto, hão de vê-Lo em Sua glória, resplandecendo mais brilhante que o Sol.