Qual é a relação da cruz com o sofrimento? Para responder a essa pergunta, precisamos considerar que o poder de Deus na Sagrada Escritura não é representado por espada, carruagem ou palácio, mas pela cruz, associada à infâmia e ao fracasso. Cristo crucificado nos ensina que Deus deliberadamente escolhe ficar ao lado das pessoas em sua dor. Essa é uma questão vital para nós.
É muito revelador estudar a história do Holocausto e notar que, pelo que os especialistas no assunto têm sugerido, os primeiros a perder a fé durante o morticínio horroroso ocorrido nos campos de extermínio foram os intelectuais judeus secularizados e aqueles conectados com a esquerda e com o marxismo. Foram, aliás, os primeiros a servir nos Sonderkommandos, unidades de trabalho recrutadas entre judeus nos campos de extermínio a fim de preparar outras vítimas judias recém-chegadas para entrarem nos fornos crematórios. Depois, retiravam os corpos das vítimas dos fornos, limpavam as câmaras de gás, retiravam dentes, cabelos e roupas das vítimas para que fossem usados pela máquina de guerra nacional-socialista, e depois queimavam os corpos. Aqueles que perseveraram na fé de seus pais geralmente eram judeus simples, devotos e conectados às suas sinagogas. Entendiam que Deus ficava do lado daquele que sofre.
Elie Wiesel, escritor judeu que recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 1986, sobrevivente dos campos de concentração alemães, conta uma história ocorrida quando estava no campo de extermínio de Auschwitz. Ele foi forçado a assistir à execução de um menino, “o pequeno Pipel, o anjo de olhos tristes”. Como ele escreveu, “por mais de meia hora ele ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando sob nossos olhos”. Logo que o menino morreu, uma voz soluçava atrás dele: “Onde está o bom Deus, onde ele está?”. Wiesel, então com 15 anos, só encontra uma resposta: “Onde ele está? Ei-lo — está aqui nesta forca”.
Podemos ver exemplos dessa presença de Deus em meio à dor e ao sofrimento no Antigo Testamento, mas isso se torna muito evidente quando meditamos na morte de Cristo na cruz. Pois nela aprendemos que Deus vem a nós não por meio de especulação, moralidade ou misticismo. Ele vem a nós no sacrifício redentor de Cristo, em despojamento, fraqueza e aparente derrota. E, quando meditamos na cruz, somos lembrados de que Deus fica do lado daqueles que sofrem.
O Senhor soberano se identifica com os sofredores, por isso Dietrich Bonhoeffer (um dos maiores escritores cristãos do século 20, que foi martirizado quando faltavam cerca de vinte dias para o término da Segunda Guerra Mundial), quando prisioneiro em Tegel, Berlim, escreveu: “Somente o Deus sofredor pode ajudar”. A cruz lembra que não há um único sofrimento que padeçamos que Deus em Cristo não tenha padecido.
A história de Joni Earickson Tada pode ser mencionada como exemplo. Em meados da década de 1960, ao mergulhar na baía de Chesapeake, Joni sofreu um terrível acidente, que a deixou tetraplégica. Ela lutou contra a amargura, a ira e o desespero. Certa noite, cerca de três anos depois do acidente, uma de suas melhores amigas, sentada ao lado de sua cama, destacou um acontecimento na vida de Jesus: “Ele também ficou paralisado”. Até então, não havia ocorrido a Joni que, na cruz, Jesus sofreu uma dor parecida com a dela, ficando incapaz de se mover, paralisado. Esse pensamento foi muito confortador, e então, por meio do amor de familiares e amigos, ela entendeu que Deus veio a ela não em poder, sinais, curas ou prodígios miraculosos, mas na cruz, em identificação com o sofrimento dela.
Nesse sentido, o Cristo sofredor não nos abandona, mas sempre está conosco. Em tudo o que passamos, ele é o nosso companheiro de sofrimento, e hoje, da mesma forma que triunfou sobre a morte em sua ressurreição, somos confortados por seu sacrifício e identificação com nossa dor e sofrimento. Além disso, recebemos esperança da sua vitória sobre a morte. Como ele abriu o caminho, sendo Cristo “as primícias dos que dormem” (1Co 15.20, ARA), assim sucederá a nós no último dia: seremos ressuscitados dentre os mortos e provaremos do triunfo de Cristo sobre morte.
Cristo matou a morte por meio da sua morte, e nós venceremos o último inimigo no dia vindouro, quando ele voltar em glória. Ele vai nos conduzir a “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1), um estado e um lugar onde não haverá dor, pranto, tristeza e sofrimento. Observe-se, porém, que tudo tem como centro a morte de Cristo na cruz. É somente por meio da teologia da cruz que somos estabelecidos como novo homem em Cristo, reunidos na igreja para magnificar o Crucificado, sendo apresentados a ele por meio da pregação e dos sacramentos, confortados por meio de seu sacrifício.
Existe um quadro que retrata a crucificação de que eu gosto muito, pintado por um artista cristão do século 16, Matthias Grünewald. Na pintura — Crucificação, que faz parte do Retábulo de Isenheim —, pode-se ver no centro o Cristo crucificado em agonia, os pregos perfurando suas mãos e pés, “seus dedos apontando […] para o céu escurecido”, seu corpo como se desfazendo em pedaços. João aparece confortando a angustiada Maria, a mãe de Jesus. Aos pés deles, Maria Madalena implora a Cristo. Há um pote de mirra, relembrando o anúncio do nascimento de Cristo (Mt 2.11) e usada para embalsamar os corpos dos mortos. João Batista segura com uma mão a Escritura aberta e aponta com a outra para o Jesus Cristo crucificado — “Este é o cordeiro de Deus” (Jo 1.29,36) —, e uma ovelha sem mácula ao pé da cruz carrega um tipo de crucifixo, tendo diante de si “o cálice que o Pai” (Jo 18.11) deu a Cristo.
Por que o corpo de Cristo se desfaz nesse quadro? Grünewald pintou esse quadro como parte de um retábulo maior para um leprosário, e o que ele queria colocar diante daqueles que sofriam atrozmente com a lepra era que Cristo se desfez no Gólgota como eles. Há identificação na cruz com aqueles que sofrem mal físico, e há completa identificação do nosso Salvador, que morreu em nosso lugar e em nosso favor no Gólgota, com aquilo que enfrentamos no nosso dia a dia. […]
Que possamos lembrar que a igreja evangélica é uma igreja debaixo da cruz, que prega a cruz e se identifica com o Crucificado — o que é loucura para os intelectuais, moralistas e místicos.
— Franklin Ferreira, “Pelares da fé: a atualidade da mensagem da Reforma”, pp. 106-110.