III – Dias Literais ou Períodos de Tempo Figurados? (final)

Por Gerhard F. Hasel.
Artigo publicado na
V. Interpretação “Literal dos ‘Dias’ Da Criação” 
Consideraremos o uso da palavra “dia” (em Hebraico yôm) de conformidade com as principais linhas da erudição atual. Existem eruditos liberais e não-liberais que chegaram à conclusão de que a palavra “dia” (em Hebraico yôm) em Gênesis 1 deve ser compreendida de maneira singular no sentido literal. Faremos uma revisão crítica de algumas de suas razões e adicionaremos outras.

1. Considerações extraídas de Comentários
O influente teólogo e exegeta liberal europeu, Gerhard von Rad, especialista em Velho Testamento, declara: “Os sete dias inquestionavelmente devem ser entendidos como dias reais, e como um lapso de tempo singular, não repetitível, em nosso mundo” (81). Gordon Wenham, erudito não-concordista britânico, especialista em Velho Testamento, conclui que: “Pouca dúvida pode existir de que aqui “dia” tem o seu sentido básico de um período de 24 horas” (82). James Barr, renomado Semitista, e especialista em Velho Testamento, opõe-se com veemência aos intérpretes figurativos, observando que os “dias” da criação foram seis dias literais completando um período de 144 horas (83). Há muito tempo o crítico formal Hermann Gunkel concluiu que: “Os “dias” são de fato dias e nada mais” (84). Este elenco de citações poderia continuar com a adição de numerosas outras vozes partilhando da mesma posição não-concordista.
Victor P. Hamilton conclui, da mesma forma que outros eruditos neo-evangélicos concordistas abrangentes, que: “Quem quer que tenha escrito Gênesis 1 acreditava estar falando de dias literais” (85). John H. Stek, outro concordista abrangente, traz numerosos fatores em defesa de sua posição a favor de “dias” literais”:
“Certamente não existe sinal algum, nem sequer insinuação, dentro da narrativa (de Gênesis 1) de que o autor pensava que seus “dias” deveriam corresponder a designações não regulares de tempo – primeiro uma série de períodos indefinidos, depois uma série de dias solares – ou que os dias por ele delimitados com “tarde e manhã” pudessem possivelmente ser entendidos como longos eons de tempo. Sua linguagem é simples e direta, usando palavras simples e diretas das mais comuns nas experiências de vida da humanidade.  Ao historiar os atos criativos de Deus, o autor foi “movido” a colocá-los em seqüência como se fossem atos humanos, e a “temporalizá-los” de acordo com a configuração do tempo criado na arena da experiência humana.” (86)
Numerosos estudiosos e comentaristas, independentemente de serem concordistas ou não, têm concluído que os “dias” da criação não podem ser nada mais do que dias literais de 24 horas. Estão eles perfeitamente cientes das interpretações figurativas, não literais, da palavra “dia” em Gênesis 1, com a intenção de harmonizá-las com as extensas eras exigidas pelo modelo evolucionista das origens. Apesar disso, insistem eles, com base em cuidadosas investigações feitas sobre o uso da palavra “dia” em Gênesis 1 e em outras passagens, que o verdadeiro significado e intenção do “dia” da criação é um dia de 24 horas.

2. Considerações feitas a partir da Lexicografia
A grande maioria dos léxicos e dicionários da língua hebraica amplamente aceitos, publicados no século vinte, traz a afirmação de que a designação “dia” em Gênesis 1 significa um dia de 24 horas, a saber, um dia solar.
Um prestigioso léxico recentemente publicado refere-se a Gênesis 1:5 como a primeira entrada escriturística para a definição de “dia de 24 horas” para o vocábulo hebraico yôm (“dia”) (87). O Léxico Hebraico-Inglês de Holladay segue o exemplo do “dia de 24 horas” (88). Brown-Driver-Briggs, léxico clássico Hebraico-Inglês, também define o “dia” da criação em Gênesis 1 como “um dia regular, definido por uma tarde e uma manhã” (89).
Lexicógrafos da língua hebraica colocam-se entre os mais qualificados eruditos hebraicos. Espera-se que eles tenham o maior cuidado em suas definições, e que também usualmente indiquem significados alternativos, se houver segurança para assim procederem em certas instâncias. Nenhum lexicógrafo afastou-se do significado da palavra “dia” como um dia literal de 24 horas em Gênesis 1.

3. Considerações feitas a partir de Dicionários
Magne Saeboe escreve no elogiado “Theological Dictionary of the Old Testament” que a palavra “dia” (yôm) em Gênesis 1 tem significado literal no sentido de “um dia completo” (90). Ele não entrevê qualquer outro significado ou alternativa.
Ernst Jenni, aplaudido erudito hebreu deste século, afirma no mais amplamente utilizado dicionário teológico da língua hebraica que o significado de “dia” no relato da criação deve ser entendido na acepção literal, como “dia de 24 horas, no sentido de uma unidade de tempo astronômica ou calendarial” (91).

4. Considerações baseadas na Semântica
O campo da semântica nos estudos linguísticos refere-se àquilo que é chamado de significação (92). Isso cobre os problemas da “avaliação acurada do significado das expressões (palavras, frases, cláusulas, sentenças, etc.), que realmente têm sido usadas” (93).
A semântica chama atenção para a questão crucial do significado exato da palavra hebraica yôm. Poderia a designação “dia” em Gênesis 1 ter um significado figurativo nesse capítulo? Deve ela ser entendida, com base nas normas da semântica, como um “dia” literal? Essa questão de semântica é particularmente importante devido ao fato de que o vocábulo hebraico yôm, tanto no singular como no plural, apresenta uma grande variedade de significados, incluindo significados extensivos como “tempo”, “tempo de vida”, etc. É possível transpor para Gênesis 1 um significado extensivo qualquer encontrado no Velho Testamento? Não poderia isso resolver o problema do conflito entre o curto período de uma semana da criação e as longas eras necessárias para a evolução natural?
O termo hebraico yôm, na sua variedade de formas, pode significar, além de um “dia” literal, também um tempo ou período de tempo (Juízes 14:4), e em um sentido mais geral “o tempo de um mês” (Gênesis 29:14), o “tempo de dois anos” (II Samuel 13:23 e 14:28; Jeremias 28:3 e 11), o “tempo de três semanas” (Daniel 11:2 e 3). No plural pode significar “ano” (I Samuel 27:7), um “tempo de vida” (Gênesis 47:8), etc. Qualquer bom léxico poderá prover uma lista abrangente das várias possibilidades (94).
É importante ter em mente que “o conteúdo semântico das palavras pode ser visto mais claramente em suas várias combinações com outras palavras e seu campo semântico extensivo” (95).
Quais são as normas semântico-sintáticas para o sentido não literal, extensivo, do termo hebraico yôm? Os significados extensivos, não literais, do termo yôm são sempre encontrados em conexão com preposições (96), frases preposicionais com um verbo, construções compostas, fórmulas, expressões técnicas, combinações genitivas, frases construtivas, etc. (97). Em outras palavras, os significados extensivos, não literais, deste vocábulo hebraico apresentam conexões linguísticas e contextuais especiais que indicam claramente a intenção de um sentido não literal. Se tais conexões linguísticas especiais estiverem ausentes, o termo yôm não terá significado extensivo não literal; terá seu sentido normal de dia literal de 24 horas.
Em vista da riqueza de usos deste termo hebraico, impõe-se o estudo do uso de yôm em Gênesis 1 para a comparação com seus outros usos. Conteria este capítulo de Gênesis os indicadores necessários pelos quais yôm pudesse ser claramente reconhecido como tendo um sentido literal ou não? Como é este vocábulo usado em Gênesis 1? É ele usado juntamente com combinações de outras palavras, preposições, relações genitivas, estados construtivos, etc. como mencionado no parágrafo anterior, o que poderia indicar um sentido não literal? São exatamente essas espécies de combinações semântico-sintáticas que nos podem informar sobre a intenção do significado do termo.
Apresentemos os fatos a respeito do uso do termo yôm, “dia”, em Gênesis 1, como qualquer estudioso do Hebraico poderia fazer:
1) O termo yôm é sempre usado no singular.
2) O termo yôm está sempre justaposto a um numeral. Em Gênesis 1:5 tem-se um cardinal, e nos demais versículos, de Gênesis 1:1 a 2:3, sempre um ordinal. Isto será considerado mais abaixo.
3) O termo yôm nunca está combinado com uma preposição, combinação genitiva, estado construtivo, construção composta, ou algo semelhante. Ele sempre aparece como um simples substantivo.
4) O termo yôm é definido de forma consistente por uma frase temporal na sentença precedente – “e houve tarde e manhã”. Esta cláusula serve como função definidora para a palavra “dia”.
5) O relato complementar da criação, de Gênesis 2:4-25, contém um significado figurativo, não literal, do termo yôm, “dia”. Quando é pretendido um sentido não literal, são empregadas as convenções semântico-sintáticas observadas no restante do Velho Testamento para tal significado, e isto é exatamente o que acontece para o uso não literal em Gênesis 2:4.
Observemos como esses critérios aplicam-se a Gênesis 2:4. O substantivo yôm se justapõe à preposição be para formar beyôm. Ainda mais, ele é usado em uma relação construtiva com a forma infinitiva de ‘asah, “fazer”, lendo-se então literalmente “no dia do fazer”. Essa combinação do singular com uma preposição em uma construção com o infinitivo (98) faz dessa combinação uma “conjunção temporal” (99), que serve como uma “introdução geral do tempo” (100).
Gênesis 2:4, segunda parte, reza literalmente “em (o) dia do Senhor Deus fazer a terra e o céu”. A boa linguagem requer que a tradução literal “em (o) dia de”, que sintaticamente é uma conjunção temporal que serve para a introdução geral do tempo, seja substituida por “quando”. Esta sentença passa a rezar então: “Quando o Senhor Deus os criou …”. Este claro exemplo de um uso extensivo não literal de yôm no relato da criação, em Gênesis 2:4-25, indica que o uso de yôm em Gênesis 1, sem qualquer qualificativo que possa marcar o seu uso não literal, em contraposição tem um sentido literal. O termo yôm em Gênesis 1 não se liga a qualquer preposição; não é usado em uma relação construtiva; e não tem nenhum indicador sintático que seria de esperar para um uso extensivo não literal. Assim, em Gênesis 1 yôm só pode significar um “dia” literal de 24 horas.
Em resumo, os usos semântico-sintáticos de yôm, “dia”, em Gênesis 1, quando comparados com os correspondentes usos e conexões linguísticas do mesmo termo em outras passagens do Velho Testamento nas quais ele tem um sentido extensivo, não permitem que o seu significado seja o de um longo período de tempo, uma época, ou algo semelhante. A língua hebraica, sua gramática, sua sintaxe, suas estruturas linguísticas  bem como o seu uso semântico, permite somente o significado literal para “dia” nos “dias” da criação de Gênesis 1.

5. Considerações baseadas no uso do singular
O termo hebraico yôm aparece no Velho Testamento em Hebraico 2304 vezes, das quais 1452 no singular (102).
Nos cinco livros de Moisés (o Pentateuco), este termo é usado 668 vezes, e no livro de Gênesis é empregado 152 vezes (103). Em Gênesis o uso do singular aparece 83 vezes.
Na enumeração dos seis “dias” da criação o termo “dia” é usado de forma consistente no singular. Há um uso do plural na frase “para dias e anos” no versículo 14, que evidentemente não se refere a um “dia” da criação. Esse uso do plural no versículo 14 dificilmente influi na discussão sobre os “dias” da criação serem longos períodos de tempo, pois o uso de “dias e anos” com relação ao calendário por si só estabelece o seu sentido literal. Não há qualquer dúvida quanto a ser literal o sentido de “dias”, com 24 horas, no versículo 14, da mesma forma que o sentido de “anos”.
Os usos adicionais de “dia”, no singular, em Gênesis 1 encontram-se nos versículos 5 e 16. “Chamou Deus à luz “Dia” (yôm)” (versículo 5) e Deus fez os luzeiros, “o maior para governar o dia” (versículo 16). O termo no versículo 5 é empregado no sentido literal de período diurno, parte clara do período de 24 horas, em contraste com o período noturno, a parte escura, a “noite” (versículo 16), do mesmo período de 24 horas (104). “Dia”, juntamente com “noite”, perfazem um “dia completo” (105).
Temos de reconhecer o fato de que o termo yôm em cada um dos seis dias apresenta as mesmas conexões:
a) Ele é usado no singular;
b) Ele se associa a um numeral; e 
c) Ele é precedido pela frase “houve tarde e manhã”.
Esta tripla conexão entre o uso do singular e de um numeral, e a definição temporal de “tarde e manhã”, mantém a homogeneidade do “dia” da criação ao longo do relato todo da criação. Isto revela também que o “tempo é concebido como linear, os eventos ocorrendo dentro dele sucessivamente” (106). Afastar-se da ligação numérica consecutiva, e das fronteiras estabelecidas pela expressão “tarde e manhã” em linguagem tão direta, seria assumir extrema liberdade com o significado claro e direto da língua hebraica (107).

6. Considerações baseadas no uso dos numerais
Os seis “dias” da criação associam-se em todas as instâncias com um numeral, na seqüência de 1 a 6 (Gênesis 1:5, 8, 13, 19, 23, 31). O dia seguinte ao “sexto dia”, o “dia” em que Deus repousou, é designado como o “sétimo dia” [Gênesis 2:2 (duas vezes), e v.3].
O que parece ser significativo é a ênfase dada à seqüência dos numerais de 1 a 7, sem qualquer hiato ou interrupção temporal. Este esquema de sete dias, o esquema da semana de seis dias de trabalho seguidos por um “sétimo dia” como dia de repouso, interliga os “dias” da criação como dias normais em uma seqüência consecutiva e ininterrupta.
Quando a palavra yôm, “dia”, é empregada juntamente com um numeral, o que acontece 150 vezes no Velho Testamento, refere-se invariavelmente a um dia literal de 24 horas.
A única exceção, em números de 1 a 1000, encontra-se em um texto escatológico em Zacarias 14:7. A expressão hebraica yôm ‘echad empregada em Zacarias 14:7 tem sido traduzida de várias maneiras: “Mas será um dia singular” (Almeida revista e atualizada); “e haverá dia contínuo” (New Revised Standard Version); “será dia contínuo” (Revised English Bible); ou “o dia será um” (108). O “dia contínuo” ou o “um dia” do futuro escatológico será um dia no qual o ritmo normal de tarde e manhã, dia e noite, como conhecido hoje, será alterado de tal forma que naquele dia escatológico haverá “luz à tarde” (versículo 7). É geralmente aceito que este é um texto difícil da língua hebraica, mas que dificilmente pode ser usado para alterar o uso direto do vocábulo em Gênesis 1 (109).

7. Considerações baseadas no uso do artigo
O termo “dia” é usado em Hebraico sem o artigo, em cada passagem referente aos dias da criação, exceto nos casos do “sexto dia” (Gênesis 1:31, em Hebraico yôm hashshishî) e do “sétimo dia” (Gênesis 2:2) (110).
De tempos em tempos é destacada a observação de que o primeiro “dia” de Gênesis 1:5 em Hebraico é literalmente “um dia” (111), porque temos o numeral cardinal “um” usado com o termo “dia”.
A falta do artigo definido tem sido interpretada como significando que todos os “dias” da criação (exceto o sexto, que tem o artigo) permitem “a possibilidade tanto de ordem cronológica quanto de ordem literária ou aleatória” (112). Esta é, entretanto, uma interpretação muito duvidosa, que não pode ser apoiada mediante pontos de vista semântico-sintáticos.
Precisamos compreender a sintaxe do texto hebraico e interpretar o texto coerentemente, sem violar a estrutura interna da língua. A recente gramática para pesquisa elaborada por Bruce K. Waltke e M. O’Connor destaca que o substantivo indefinido yôm, com o numeral cardinal indefinido “um” (em Hebraico ‘echad) em Gênesis 1:5 tem “uma força enfática de contagem”, e um “sentido definido”, além de ter a força de um número ordinal que deve ser compreendido como “o primeiro dia” (113).
Com base nessa observação sintática a respeito da língua hebraica, “o primeiro dia” e “o sexto dia” da semana da criação devem ter significado definido, no sentido de terem recebido o artigo em função de regra sintática ou de ortografia (para não falar do “sétimo dia”, o qual será considerado em seguida). O primeiro e o último “dia” da criação são definidos pela sintaxe ou pela ortografia, o primeiro pela função sintática, e o último pelo uso do artigo. Cabe uma observação – esse uso definido do primeiro e do último dia da criação constitui um dispositivo literário, uma inclusão, que enquadra os seis “dias” da criação como dias definidos ou articulados. Uma das intenções desse uso parece ser levar à conclusão de que os “dias” de Gênesis 1 não permitem concluir que a ordem aleatória ou a ordem cronológica sejam assuntos encerrados (114).
Na realidade acontece o contrário. Como o primeiro e o sexto dia são definidos, estabelecendo fronteiras claras, isso significa que os dias têm sentido cronológico e sequencial  formando um período ininterrupto de seis dias literais de 24 horas na criação. Assim, o uso definido do primeiro e do sexto dia, respectivamente, marca e enquadra a sequencia dos seis dias dentro de uma unidade de tempo coerente, sequencial e cronológica, que será repetida em cada semana sucessiva.
“O sétimo dia” também recebe o artigo em Hebraico. Como “o primeiro dia” (versículo 5) é definido, da mesma forma que “o sexto dia” (versículo 31), forma-se uma unidade de tempo mais ampla. É a unidade de seis dias de trabalho seguidos pelo “sétimo dia” (Gênesis 2:2-3), o dia de repouso. Desta forma a seqüência de seis dias de trabalho encontra o seu fim e clímax cronologicamente e sequencialmente no sétimo dia”, constituindo em seu conjunto o ciclo semanal, com o dia de repouso sendo o “sétimo dia” da semana.
A maior unidade de tempo literal, conseqüentemente, consiste da unidade divinamente planejada do esquema “seis mais um”, composto de “seis” dias de trabalho em seqüência ininterrupta, seguidos pelo “sétimo dia” de repouso. Esta seqüência ininterrupta é divinamente planejada e ordenada para marcar o ritmo do tempo para cada semana sucessiva.

8. Considerações baseadas na fronteira “tarde-manhã”
O relato da criação em Gênesis não somente liga cada dia a um numeral sequencial  como também estabelece as fronteiras do tempo mediante “tarde e manhã” (versículos 5, 8, 13, 19, 23, 31). A frase rítmica “e houve tarde e manhã” provê uma definição para o “dia” da criação: o “dia” da criação define-se como consistindo de “tarde” e de “manhã”. É ele portanto um dia literal.
O termo para “tarde” (em Hebraico ‘ereb) (115) abrange a parte escura do dia, numa representação pars pro toto (significando que uma parte, neste caso a “tarde”, representa toda a parte escura do dia) (cf. “dia-noite” em Gênesis 1:14). O termo correspondente, “manhã” (em Hebraico bqer) representa, pars pro toto (significando que uma parte, neste caso a “manhã”, representa a parte clara do dia), todo o período de claridade do dia (116). Deve-se observar que a expressão “tarde-manhã” deve ser compreendida como tendo o mesmo significado em cada um dos seus seis usos no texto de Gênesis 1 (117).
“Tarde e manhã” é uma expressão temporal que define cada “dia” da criação como um dia literal. Ela não pode significar nada mais.

9. Considerações baseadas em passagens sobre o sábado no Pentateuco
Outra espécie de evidência interna provida no Velho Testamento para o significado dos dias resulta de duas passagens sobre o sábado no Pentateuco, que se referem aos “dias” da criação. Elas informam ao leitor quanto a como os “dias” da criação foram compreendidos por Deus.
A primeira passagem faz parte do quarto mandamento expresso por Deus no Monte Sinai e registrado em Êxodo 20:9-11 – “Seis dias trabalharás… mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus… porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra… e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou”.
Estas palavras são proferidas pelo próprio Jeová (versículo 1). As ligações com a criação transparecem do vocabulário (“sétimo dia”, “os céus e a terra”, “descansou”, “abençoou”, “santificou”) e no esquema “seis mais um” (ver também Deuteronômio 5:13-14), apenas para mencionar algumas (118). Evidentemente as palavras usadas nos Dez Mandamentos consideram o “dia” da criação como um “dia regular” (119) de 24 horas e demonstram que o ciclo semanal é uma ordenança temporal da criação.
Estas palavras do Senhor fornecem um balizamento interno no Pentateuco e no Velho Testamento sobre a questão de como Deus, o doador das “Dez Palavras”, compreende o “dia” na criação. A palavra divina que promulga o mandamento do sábado toma os “seis dias” da criação como sequenciais, cronológicos e literais (120).
O argumento de que as palavras do quarto mandamento nada mais são do que uma “analogia” ou “arquétipo”, no sentido de que o repouso do ser humano no sétimo dia deveria ser semelhante ao repouso de Deus na criação (121) baseia-se num reducionismo e numa impermissível alteração de imagem literária. Terence Frotheim observou de forma incisiva que o mandamento não usa analogia nem pensamento arquetípico, mas que a sua ênfase “firma-se em termos da imitação de Deus ou em um precedente divino que deve ser seguido: Deus trabalhou durante seis dias e descansou no sétimo, e portanto nós temos que fazer o mesmo” (122).
A segunda passagem sobre o sábado no Pentateuco é Êxodo 31:15-17, que novamente são palavras do próprio Deus. Ela mantém várias ligações terminológicas com Gênesis 1, com cujo texto se relaciona conceitual e tematicamente. Esta passagem deve ser entendida como significando que o “dia” da criação foi um dia literal, e que a seqüência dos dias foi cronológica. O sábado semanal para o povo de Deus baseia-se na imitação do exemplo, pois “em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, e ao sétimo dia descansou e tomou alento” (versículo 17, versão Almeida revista e atualizada; “… descansou e achou refrigério”, versão Brasileira).
Deus achou refrigério porque teve prazer em sua obra recém-completada. A humanidade também achará refrigério e terá prazer quando observar o sábado do sétimo dia (versículo 15).
A natureza do sábado como “sinal” no versículo 15 revela que o observador do sábado segue o exemplo divino. Deus mesmo guardou o “sétimo dia” que os seres humanos que Lhe pertencem deverão imitar. Eles assim procederão no mesmo ritmo do ciclo semanal de seis dias literais de trabalho seguidos cronológica e sequencialmente pelo “sétimo dia” como dia de repouso e refrigério, como fez o seu Criador na semana da criação.

10. Considerações baseadas na seqüência de eventos
A criação da vegetação com plantas produzindo semente, e árvores frutíferas, ocorreu no terceiro dia (Gênesis 1:11-12). Grande parte dessa vegetação parece ter necessitado de insetos para a polinização. Os insetos, entretanto, foram criados no quinto dia (versículo 20). Se a sobrevivência desses tipos de plantas que necessitam de insetos para a polinização dependesse deles para a produção de sementes e a sua perpetuação, então haveria um sério problema se o “dia” da criação significasse “época” ou “eons”. Ainda mais, “a consistência da interpretação na “teoria do dia-época” exigiria um longo período de iluminação e outro de escuridão para cada uma das épocas supostas. Isto seria imediatamente fatal tanto para as plantas quanto para os animais” (123).
Parece que o “dia” da criação deve ser entendido como um dia literal e não como um longo período de tempo, sejam eras, épocas ou eons.
Embora esses argumentos possam não ser decisivos, entretanto eles apontam na mesma direção que os argumentos linguísticos e semânticos decisivos encontrados no próprio texto hebraico.

VI. Conclusões
Este artigo investigou o significado dos “dias” da criação. Ele considerou argumentos-chave a favor de um significado figurativo, não literal, dos “dias” da criação, e achou-os carentes de base quanto à pesquisa do gênero literário, considerações literárias outras, estudo gramatical, usos sintáticos e conexões semânticas. As evidências cumulativas baseadas em considerações comparativas, literárias, linguísticas e outras, convergem em todos os níveis, levando à conclusão única de que a designação yôm, “dia”, em Gênesis 1 significa consistentemente um dia literal de 24 horas.
O autor de Gênesis 1 não poderia ter usado meios mais abrangentes e todo-inclusivos para exprimir a ideia de um “dia” literal, do que aqueles que escolheu. Há uma completa falta de indicadores como preposições, expressões qualificativas, frases construtivas, conexões semântico-sintáticas, etc., com base nos quais a designação “dia” na semana da criação pudesse ser tomada como sendo algo diferente de um dia regular de 24 horas. As combinações de fatores como o uso de artigos, do número singular, das construções semântico-sintáticas, das fronteiras do tempo, etc., corroboradas pelas promulgações divinas como em Êxodo 20:8-11 e Êxodo 31:12-17, sugerem de maneira única e consistente que o “dia” da criação tem significado literal, sequencial e cronológico.

NOTAS
81. von Rad, 65.

82. Wenham, 19.
83. James Barr, Fundamentalism (Philadelphia: Westminster Press, 1978), 40-43.
84. Hermann Gunkel, Genesis übersetzt und erklärt (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1901), 97.
85. Hamilton, 53.
86. Stek, 237-238.
87. Benedickt Hartmann, Philippe Reymond, and Johann Jakob Stamm, Hebräisches und Aramäisches Wörterbuch der Hebräischen Sprache (Leiden: E. J. Brill, 1990), 382, daqui para diante designado pela sigla HAL. O seu predecessor, Ludwig Koehler and Walter Baumgartner, Lexikon in Veteris Testamenti Libros (Leiden: E. J. Brill, 1958), 372, reza “dia (de 24 horas)” para o dia da criação.
88. William H. Holladay, A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1971), 130.
89. Brown, Driver and Briggs, 398.
90. Magne Saeboe, “yôm”, in Theological Dictionary of the Old Testament, eds. G. Johannes Botterweck and Helmer Ringgren (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1990), 6:23.
91. Ernst Jenni, “jom Tag”, Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament, eds. Ernst Jenni and Claus Westermann (Zurich/Munich: Theologischer Verlag, 1971) 1:709.

92. James Barr, The Semantics of Biblical Language, 3rd ed. (London: SCM Press, 1991), 1.

93. Ibidem
94. HAL, 382-384; Brown, Driver and Briggs, 398-401.

95. Saeboe, 14.

96. Ibidem, 15 : “… no Hebraico do Velho Testamento , 1057 (45,9%) envolve uma preposição (especialmente com o singular)”.
97. Ibidem, 14-20.
98. E. Kautzsch and A. E. Cowley, eds., Gesenius’ Hebrew Grammar, 2º ed. (Oxford: Clarendon Press, 1910), 347 #114e: “Este uso da construção infinitiva é especialmente freqüente em conexão com be ou ke para exprimir determinações temporais (em Inglês resumido a uma cláusula temporal…)…”
99. Westermann, 198.
100. Saeboe, 15.
101. Ibid., 13; Jenni, 708.
102. Jenni, 707, notes that there are only four nouns used more often in the Old Testament.

103. Ibid., 708.

104. Stek, 237, está certo em observar que cada “dia” da criação tem de ser o mesmo, pois a expressão temporal “tarde e manhã” e o numeral respectivo são idênticos em todos os casos. Em outras palavras, cada “dia” da criação tem igual duração. A partir disto, mostra ele que não é defensável argumentar que os primeiros três “dias” foram longos períodos de tempo, enquanto que os restantes “dias” foram de 24 horas. Esta última posição foi discutida por Edward J. Young, Studies in Genesis One (Philadelphia: Presbyterian and Reformed Publishing House, 1964), 104, e encontrou um recente defensor em R. Clyde McCone, “Were the Days of Creation Twenty-four Hours Long?” The Genesis Debate, 24. Young e adeptos inclinam-se a separar a duração dos dias da criação alegando que o sol e a lua não tinham sido criados ainda até o quarto dia. A questão realmente é quanto a ser realmente este o caso. Parece provável que no quarto dia Deus designou o sol e a lua para governar respectivamente o dia e a noite. Esta designação das funções não se contrapõe à existência anterior do sol e da lua. É possível que eles não estivessem visíveis à vista humana antes do quarto dia. Por esta razão muitos sugerem que poderia ter existido uma cobertura de núvens ou de vapor anterormente ao quarto dia.
105. Saeboe, 22-23.
106. Bruce K. Waltke, “yôm, day, time, year”, Theological Wordbook of the Old Testament, ed. R. Laird Harris (Chicago: Moody Press, 1980), 371.
107. Hamilton, 54.
108. Ralph L. Smith, Micah-Malachi, Word Biblical Commentary (Waco, TX: Word Books, 1984), 277.
109. A outra exceção é com números acima de 1000 no texto apocalíptico de Daniel 12:11-12 com referência aos 1290 “dias” e aos 1335 “dias”. Existem algumas diferenças com relação a Gênesis 1. Nas duas passagens de Daniel 12 a forma plural de “dias” é empregada em contraste com Gênesis 1. Em Gênesis 1 o “dia” refere-se ao que aconteceu no passado; em Daniel 12 “dias” referem-se a um tempo profético no futuro. O contexto de todas as outras predições proféticas no livro de Daniel torna claro que na perspectiva profética cada elemento de tempo, sejam “tempos” (4:16, 23, 25, 32), “tempo, tempos e metade de um tempo” (7:25), “tardes e manhãs” (8:14), “semanas” (9:24), e “dias” (12:11-12), representa uma outra realidade no tempo histórico real. Em outras palavras, em Daniel o princípio do dia/ano está presente todas as vezes que se apresenta uma profecia temporal. O contexto apocalíptico de Daniel é diferente do contexto da criação de Gênesis 1. O tempo no início, na criação, não é idêntico ao tempo preditivo que encontra o seu cumprimento no futuro histórico. Em Gênesis 1 nada há de preditivo. Este texto é um registro em prosa do passado, e não profecia apocalíptica do futuro. Essas perspectivas de conteúdo e de contexto não garantem o afastamento do significado direto no relato da criação em Gênesis.
110. Em Gênesis 1:31 o Hebraico tem um artigo tanto antes de yôm quanto do numeral. Em Gênesis 2:3 o artigo está somente antes do numeral que segue o substantivo yôm. De acordo com a sintaxe hebraica, o artigo no último caso torna articular a palavra que o numeral qualifica.
111. Ronald F. Youngblood, The Book of Genesis, 2ª ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1991), 26. Westermann, 76, de fato traduz “um dia”.
112. Youngblood, Genesis, 26.
113. Bruce. K. Waltke and M. O’Connor, An Introduction to Biblical Hebrew Syntax (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1990), 274. A tradução “dia um” não está sintaticamente correta, mesmo que seja usado aqui o cardinal. Em cláusulas do tipo de Gênesis 1:5 o cardinal serve efetivamente como um número ordinal (Nahum M. Sarna, Genesis, The JPS Torah Commentary [Philadelphia: Jewish Publication Society, 1989], 8, 353).
114. Youngblood, Genesis, 26.
115. Ver Herbert Niehr, “‘ereb”, Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament, 6:359-366.

116. M. Barth, “boqer”, Theological Dictionary of the Old Testament, 2:225.

117. Werner H. Schmidt, Die Schöpfungsgeschichte der Priesterschrift, 2d ed. (Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1967), 68.
118. Ver Niels-Erik A. Andreasen, The Old Testament Sabbath: A Tradition-Historical Interpretation, SBL Dissertation Series Nº 7 (Missoula, MT: Society of Biblical Literature, 1972), 174-202; Gerhard F. Hasel, “The Sabbath in the Pentateuch”, The Sabbath in Scripture and History, ed. Kenneth A. Strand (Washington, DC: Review and Herald Publishing Association, 1982), 21-43; idem, “Sabbath”, The Anchor Bible Dictionary, 849-856; Gnana Robinson. The Origin and Development of the Old Testament Sabbath: A Comprehensive Exegetical Approach (Frankfurt: Peter Lang, 1988), 139-142, 296-301.
119. Schmidt, 68 nº 5.
120. Ver também Weeks, 18: “O mandamento perde completamente sua força convincente se eles (os “dias”) não forem tomados literalmente.
121. Blocher, 48; ver também Henricus Renckens, Israel’s Concept of the Beginning: The Theology of Genesis 1-3 (New York: Herder & Herder, 1964), 98-100.
122. Fretheim, 20.
123. Bailey, 126.
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